quarta-feira, 6 de maio de 2009

O Deus da Vida

1. Deus é Pai

“Deus é amor” (1Jo 4,8). Esta fórmula joanina resume a revelação bíblica sobre Deus. O amor dá a vida, por isso Deus é chamado também de Pai. Ele está no inicio de tudo quanto existe.
Recompensais, assim, ao SENHOR, povo louco e ignorante? Não é ele teu Pai, que te adquiriu, te fez e te estabeleceu?
Lembra-te dos dias da antiguidade, atenta para os anos de muitas gerações; pergunta a teu pai, e ele te informará, aos teus anciãos, e eles te dirão. (Dt 32, 6-7; cf. Sr 34,20; Is 53, 2)

Com ressonâncias veterotestamentárias, o cântico de Maria falará também do Deus que acolhe Israel como a uma criança (cf. Lc 1, 54). Essa designação diz respeito a uma diária e profunda experiência humana e quer ressaltar que Deus é a fonte da vida. O que em outros contextos culturais pode ser expresso igualmente e com grande riqueza, pelo conceito de mãe. De fato, na própria Bíblia há referencias à dimensão materna do amor de Deus.
Deus dá origem ao que existe porque é o primeiro de tudo, vivifica porque é vida, ama e transmite a capacidade de amar porque – segundo a expressão paulina retomada por João Paulo II – ele é “rico em misericórdia” (Ef 2, 4). Deus Pai transborda de amor e ternura. É significativo que Jesus utilize, só ele o faz, a palavra aramaica Abba para dirigir-se e referir-se a seu Pai. A tradução mais aproximada seria o carinhoso e coloquial “papai”. O Pai, comunicador de vida, é o Deus amor. O espírito Santo é o vínculo de amor entre o Pai e o Filho, entre Deus e nós, entre os seres humanos. A presença do Espírito em nossos corações nos permite chamar, como Jesus, de Abba ao Pai (cf. Gl 4, 6). O mistério da Trindade exprime a plenitude da vida de Deus.

O Deus da vida se faz presente na história humana; essa presença alcança sua máxima e radical expressão na encarnação do Filho. Como bem diz J. Cone, “perguntar quem é Deus? É perguntar-se pelo que ele faz, por sua ação libertadora na história”[1] Importante, porém, é não se equivocar: Deus não é libertador porque liberta; ele liberta porque é libertador. Deus não é justo porque estabelece a justiça, ou fiel porque cumpre o que promete. É o contrário. Não se trata de um trocadilho. É um modo de afirmar o primado de Deus e a sua transcendência e de recordar que seu ser dá sentido à sua ação. De acordo com a Bíblia, as intervenções de Deus na vida do seu povo não implicam qualquer tipo de imanentismo ou de dissolução de Deus na história. Elas ressaltam antes seu caráter de principio absoluto e transcendente.

Trata-se de um Deus próximo e longínquo ao mesmo tempo. Conhecemos a Deus pela sua ação na historia e por isso saber quem ele é nos indica o que devemos fazer se cremos nele. Várias vezes aparece na Bíblia o que resumidamente afirma o Deuteronômio:
...”Lembra-te-as de que foste escravo no Egito, de onde Javé, teu Deus, te resgatou; eis por que eu te ordeno agires desta maneira” (Dt 24,18).
Jesus ressume este ritmo vital e crente quando prescreve “amai-vos uns aos outros como eu vos amei” (Jô 15, 12). Esse é igualmente o ensinamento da parábola do servo mau, ao qual o rei dirá: “não devias tu também compadecer-te de teu companheiro, do mesmo modo que me compadeci de ti?” (Mt 18, 33).

O Deus da vida exprime o seu amor ao gerar para si uma família de seres iguais por um ato de libertação, ao fazer e exigir justiça no meio de seu povo, ao estabelecer com ele uma aliança irrenunciável na historia. Libertação, justiça e aliança se implicam e se conferem mutuamente pleno sentido. Tais gestos nos revelam um Deus vivo, santo e fiel, que deve levar os cristãos a comportamentos determinados.

A opressão, em qualquer de suas formas, significa morte. Esta é a experiência do povo judeu no Egito, país que passou a ser o símbolo do despojo e da exploração e principalmente do pecado, causa última da injustiça. Em oposição a ela se encontra a vivencia do Êxodo: libertar é dar vida. Deus liberta porque é o Deus da vida. O anuncio messiânico de Jesus centra-se igualmente na libertação. Conseqüentemente o tema perpassa toda a Bíblia e nos revela um Deus que ama a vida, essa é sua vontade para todos Crer em Javé, o Deus que liberta; afirmar que Jesus, “o autor da vida” (At 3,15) é o Filho de Deus implica ser amigo da vida.

... Deus age na história libertando seu povo. Por isso a experiência e a perspectiva libertadoras constituem um elemento central na Escritura.
Deus se revela nas suas obras. E sabemos bem que o Êxodo é o acontecimento no qual se baseia a fé do povo judeu; ela surge da experiência histórica da ação de Javé na libertação da opressão egípcia e da marcha rumo à posse coletiva da terra prometida.

E disse o SENHOR: Tenho visto atentamente a aflição do meu povo, que está no Egito, e tenho ouvido o seu clamor por causa dos seus exatores, porque conheci as suas dores.
Portanto, desci para livrá-lo da mão dos egípcios e para fazê-lo subir daquela terra a uma terra boa e larga, a uma terra que mana leite e mel; ao lugar do cananeu, e do heteu, e do amorreu, e do ferezeu, e do heveu, e do jebuseu.
E agora, eis que o clamor dos filhos de Israel chegou a mim, e também tenho visto a opressão com que os egípcios os oprimem.
Vem agora, pois, e eu te enviarei a Faraó, para que tires o meu povo, os filhos de Israel, do Egito. (Ex 3, 7-10).
É este o ato fundacional da fé de Israel. Trata-se da vivencia de um povo. Nela Javé se revela como libertador, através de um gesto que acompanha e dá sentido a todo o itinerário que leva seu povo ao encontro com ele. Por isso libertação e culto ao senhor estão estreitamente ligados. Javé diz repetidamente a Moisés: “Vai à presença do Faraó e fala-lhe: assim fala o Senhor, Deus dos hebreus: deixa sair o meu povo a fim de que me renda culto” (Ex 9,1, a mesma idéia em Ex 16,16 e 17,13). Não se rende verdadeiro culto a Deus se não se está em situação de liberdade. A libertação, por sua vez, chega à plenitude na oração dirigida a Javé, o Deus da vida. Este vínculo constitui o núcleo de toda experiência religiosa.

Deus se compromete com seu povo e intervém na história como go’el, libertador e vingador, para estabelecer a justiça e o direito. Mas o Deus da Bíblia, diz também, e repetidas vezes, que ele é Santo, isto é, diferente.
Deus é o “totalmente Outro”, segundo a célebre expressão de K. Barth; quer dizer Aquele que é completamente diferente, pois é isso o que santo significa. O Senhor o afirma diante de tendência do povo a interpretar a sua ação na historia com categorias puramente humanas.
“Não executarei o furor da minha ira; não voltarei para destruir a Efraim, porque eu sou Deus e não homem, o Santo no meio de ti; eu não entrarei na cidade”. (Os 11,9)

Deus, não um ser humano. Esta será uma reivindicação medular da revelação sobre Deus na Bíblia. Exigência divina fundamental é reconhecer a Deus como tal. Há etapas na forma de o povo judeu compreender esta verdade, mas a exigência se dá desde o início.

“Eu sou o SENHOR teu Deus, que te tirei da terra do Egito, da casa da servidão;
Não terás outros deuses diante de mim;
Não farás para ti imagem de escultura, nem semelhança alguma do que há em cima no céu, nem em baixo na terra, nem nas águas debaixo da terra;
Não te encurvarás a elas, nem as servirás; porque eu, o SENHOR teu Deus, sou Deus zeloso, que visito a iniqüidade dos pais nos filhos, até à terceira e quarta geração daqueles que me odeiam”.(Dt 5,6-9)

Trata-se de um Deus zeloso as sua santidade, que a defende contra toda deformação, porque ela permite salvar a liberdade e a fecundidade da relação com seu povo. “E não te prostrarás diante de nenhum outro deus, porque Javé, que tem o nome de Ciumento, é um Deus ciumento” (Ex 34,14)
“E clamavam uns aos outros, dizendo: Santo, Santo, Santo é o SENHOR dos Exércitos; toda a terra está cheia da sua glória”.(Is 6,3).
É o texto do Sanctus da liturgia eucarística. A Santidade de Deus é, com efeito, um tema central da pregação de Isaias:

“Vós sois as minhas testemunhas, diz o SENHOR, e meu servo, a quem escolhi; para que o saibais, e me creiais, e entendais que eu sou o mesmo, e que antes de mim deus nenhum se formou, e depois de mim nenhum haverá.
Eu, eu sou o SENHOR, e fora de mim não há Salvador”.(Is 43,10-11).

A Bíblia apresenta a santidade de Deus seja mediante grandes e aterradoras imagens de algumas teofanias, seja através do seu amor, misericórdia e perdão. O essencial é que a vida de Deus supera em muito toda medida e previsão humanas. Essa é também a vivencia de todo crente, como diz muito bem J. Cone: “Deus é sempre mais que a experiência que temos dele”.

“Ó profundidade das riquezas, tanto da sabedoria, como da ciência de Deus! Quão insondáveis são os seus juízos, e quão inescrutáveis os seus caminhos!
Porque, quem compreendeu a mente do Senhor? ou quem foi seu conselheiro?
Ou quem lhe deu primeiro a ele, para que lhe seja recompensado”?(Rm 11,33-35)

As escrituras nos ensinam que o Deus da Bíblia irrompe na historia, mas nos mostram também que ele não se dilui no devir histórico. Ao contrário, somos nós, como S.Paulo no Aerópago, que em Deus “vivemos, nos movemos e existimos” (Hb 17, 28). Podemos então dizer que o Deus Santo é um Deus que pactua com seu povo e que o Deus da Aliança é “o totalmente Outro”, o Santo. São dois aspectos distintos que se implicam mutuamente.

(...) O senhor se revela a si mesmo através de missão de libertação. O povo por ele convocado, com o qual entra em aliança, é sacramento – sinal eficaz – de vida, de libertação na história. O Deus vivo liberta, o Deus libertador é santo. Um texto de Isaías vincula numa fórmula breve as duas dimensões:

“O nosso redentor cujo nome é o SENHOR dos Exércitos, é o Santo de Israel”.(Is 47,4)

Deus faz do seu povo um sinal de libertação e de santidade na história. Há um texto do Levítico que é esclarecedor:

“Por isso guardareis os meus mandamentos, e os cumprireis. Eu sou o SENHOR.
E não profanareis o meu santo nome, para que eu seja santificado no meio dos filhos de Israel. Eu sou o SENHOR que vos santifico;
Que vos tirei da terra do Egito, para ser o vosso Deus. Eu sou o SENHOR”.(Lv 22, 31-33)

Javé santifica seu povo, faz com que ele passe para seu campo, libertando-o da opressão. Esta nação livre, composta de pessoas cujo direito à vida e à justiça é respeitado, devem santificar, isto é, devem fazer com que outros entrem na esfera do Santo. Para tal é necessário que eles cumpram os preceitos do Senhor. A santidade dos crentes mostra a santidade de Javé. Dar esse testemunho supõe mudança interior e a adoção de um caminho diverso.

“E eu santificarei o meu grande nome, que foi profanado entre os gentios, o qual profanastes no meio deles; e os gentios saberão que eu sou o SENHOR, diz o Senhor DEUS, quando eu for santificado aos seus olhos.
E vos tomarei dentre os gentios, e vos congregarei de todas as terras, e vos trarei para a vossa terra.
Então aspergirei água pura sobre vós, e ficareis purificados; de todas as vossas imundícias e de todos os vossos ídolos vos purificarei.
E dar-vos-ei um coração novo, e porei dentro de vós um espírito novo; e tirarei da vossa carne o coração de pedra, e vos darei um coração de carne.
E porei dentro de vós o meu Espírito, e farei que andeis nos meus estatutos, e guardeis os meus juízos, e os observeis”.(Ez 36, 23-27).

A afirmação de vida leva a nação a dar testemunho, na história, do Deus que liberta, à medida que ela pratica a justiça. Estabelecer o direito e a justiça é prolongar o ato libertador de Deus, é fidelidade à Aliança firmada entre Deus e seu povo, isto é, é um passo para a plenitude da vida. O termo justiça adquire, assim, uma conotação tão importante e rica na Bíblia que chega a ser o equivalente de salvação. Paulo, por exemplo, fala da salvação como justificação. A justiça de Javé caracterizará então sua ação salvífica na história[2].

A norma de comportamento do povo que crê no Deus da vida será justamente dar a vida. O que equivale a agir de modo a que a vida esteja presente contra toda força que queira destruí-la. Contra a morte e, conseqüência, contra a opressão, a fome, o egoísmo, a doença, a injustiça e, em ultima instância, contra o pecado, que é o selo característico da morte.


2. A fidelidade divina


A Bíblia nos revela um Deus que é próximo e fiel. A proximidade de Deus se expressa no pacto que estabelece com seu povo, compromisso que une estreitamente as duas partes e que vive na memória de Deus e nos crentes que põem em prática seus apelos. A Antiga e a Nova Aliança nos revelam a fidelidade divina sempre disposta a perdoar e, ao mesmo tempo, sempre exigente.

A Aliança que Deus estabelece com seu povo é um tema bíblico central, por isso pôde ser considerado por alguns como o núcleo de cristalização de toda uma teologia na Bíblia.


2.1. Uma presença mútua


A promessa a Abraão inclui um pacto entre Deus e o povo que dele nascerá: “Serei o teu Deus e o de teus futuros descendentes” (Cf. Gn 17,8). Trata-se de um “pacto perpétuo”, insiste o Senhor (Gn 18,7.19), maior razão para pedir a Abraão e aos seus que observem suas exigências.

A fórmula fundamental para expressar o sentido e o conteúdo da Aliança é: “Tomar-vos-ei por meu povo, e serei o vosso Deus” (Ex 6,7; cf. também Jr 7,23); ela percorre toda Bíblia. A Aliança indica pertença e posse recíprocas. Daí que uma das imagens mais utilizadas e mais profundas nas Escrituras para falar do vínculo entre Javé e seu povo seja a relação conjugal. Trata-se de uma imagem ousada com a qual os profetas querem dar ao amor seu sentido mais pleno. Esposo e esposa se pertencem um ao outro. Javé diz a seu povo:

“Eu te desposarei a mim para sempre... Naquele dia eu responderei – oráculo de Javé – eu responderei ao céu e ele responderá à terra. Eu te desposarei a mim na fidelidade e conhecerá a Javé” (Os 2,21.23.22)

Céu e terra se ouvirão mutuamente. O amor oferecido é fiel, mas requer em troca fidelidade à Aliança que busca consolidar o estabelecimento da justiça e do direito. O amor é fundamento dessa posse mútua. A mesma imagem é retomada por Paulo para falar da relação entre Cristo e a Igreja (Cf. Ef 5,21-33).

Essa fórmula da aliança, reiterada com freqüência quase obsessiva, constitui um elemento chave da identidade nacional para o povo judeu. Vale ressaltá-lo. A fé em Javé possibilita a Israel reconhecer-se não só religiosamente, mas também afirmar-se como povo, como nação em meio a outras na história. É uma coletividade humana que tem o seu Deus e a ele pertence, é um povo que fez um pacto com o Senhor e que recebeu o dom da Aliança.
Este enfoque marca indelevelmente a fé bíblica. Com efeito, ela sempre terá a forma de convenio estabelecido com Deus que toma a iniciativa: “Eis que faço uma Aliança” (Ex 34,10) . esclareçamos que se trata da Aliança com um povo, com um grupo humano e não com uma pessoa tomada individualmente. Sendo a fé algo a ser vivido no interior de uma comunidade, a vida de fé de cada um é corrigida, regulada, julgada pelo povo inteiro convocado à Aliança com o Senhor.

Esta é uma das razões pelas quais é impossível ao crente, no horizonte bíblico, manipular a Deus; ele não é dono de Deus. Javé sai ao encontro de um povo que o acolhe e por sua vez se reconhece como pertencendo a ele; este é o contexto de fé de cada pessoa. Em oposição a esta dupla pertença que é o sentido de fé de cada pessoa. Em oposição a esta dupla pertença que é o sentido da aliança bíblica, apresenta-se, sem duvida, a tentação permanente de compreender a fé de forma puramente individual pretendendo assim escapar à opinião do outro, ao juízo e ao controle comunitários da vida crente. Tendência que finalmente levará a voltar-se sobre o mesmo e fechar-se ao novo.

Pelo contrário, o fato de aceitar que a crença em Deus é algo comunitário abre-nos constantemente ao novo, ao ilimitado, ao inefável. Virá à mente de outros – e o experimentarão – novas exigências da fé em Deus, coisas que não nos haviam ocorrido enquanto indivíduos isolados. A comunidade, na qual se dão diversos carismas e funções, regulará a fé de cada um e se verá por sua vez enriquecida graças às diversas experiências pessoais. O povo como um todo pertence a Javé. Não se trata de um tu e eu, mas de tu e nós.
O laço que une Deus com o povo implica a lealdade de ambos. O Senhor cumpre sua parte: “Os montes podem mudar de lugar e as colinas podem abalar-se, mas o meu amor não mudará, a minha aliança de paz não será abalada, diz Javé, aquele que se compadece de ti” (Is 54,10). Essa é a razão última da fidelidade: “Levado por um amor eterno, diz Javé, o teu redentor” (Is 54,8). O Deus da Bíblia é pois um Deus que estabelece uma Aliança e que, como diz amiúde a Escritura, sempre tem presente aquilo que o levou a esse pacto.

“Porquanto o SENHOR teu Deus é Deus misericordioso, e não te desamparará, nem te destruirá, nem se esquecerá da aliança que jurou a teus pais” (Dt 4,31).

“Nunca vai se esquecer da Aliança”; a lealdade é, em primeiro lugar, memória. Ser fiel é recordar, não esquecer nossos compromissos, ter o senso da tradição. A fidelidade à Aliança supõe a recordação das fontes do convenio e de suas exigências. (...). O Deus da Bíblia é um Deus que nunca vai se esquecer de sua Aliança e que solicita, em reciprocidade, que o povo a tenha igualmente presente. O Senhor se recorda de todos e de cada um dos membros do povo com o qual estabeleceu seu pacto, tem presente em particular os mais desvalidos e pobres dentre eles.

Mas a verdadeira fidelidade implica mais que isso; ela também requer, e isto parece menos claro à primeira vista, projeção para o futuro. Ter memória não é permanecer fixado ao passado. Recordar o ontem é importante; mas só porque nos ajuda a apostar no amanhã, a ir adiante, a caminhar por rotas inéditas. A fidelidade não consiste em percorrer sem iniciativa sendas trilhadas, mas em renová-las permanentemente; ela me conduz - deve-nos conduzir – a inovar, a mudar, a esboçar novos projetos. Trata-se de uma manifestação de confiança no outro que a Bíblia atribui a Deus e que se torna exigência para o crente.

A iniciativa de Javé de estabelecer um pacto com o povo implica a fidelidade de Javé ao povo que escolheu. Um texto chave do Êxodo o recorda, ao mesmo tempo em que expressa outros atributos do Deus da Aliança. No monte Sinai – lugar privilegiado da epifania de Deus – ,Javé passa diante de Moisés e se declara a si mesmo “Javé, Deus misericordioso e clemente, na cólera e rico em amor e fidelidade” (Ex 34,6).

A fidelidade ressalta as outras qualidades de Deus. Javé é obstinadamente compassivo e misericordioso. Seu amor não surge e desaparece como um relâmpago, tem antes a persistência das águas de um rio que furam as rochas e percorrem com paciência e obstinação o leito que para si mesmas forjaram. Quem dele se alimenta pode contar sempre com a Constancia de seu curso.


2.2. Ternura e exigência


Trata-se de um Deus que busca manter viva a dupla pertença que a Aliança implica. Por isso desconhece o ressentimento permanente, motivado mais pelo amor de si mesmo que pela preocupação com o outro.

“E o SENHOR me disse: Já a rebelde Israel mostrou-se mais justa do que a aleivosa Judá.
12 Vai, pois, e apregoa estas palavras para o lado norte, e dize: Volta, ó rebelde Israel, diz o SENHOR, e não farei cair a minha ira sobre ti; porque misericordioso sou, diz o SENHOR, e não conservarei para sempre a minha ira”. (Jr 3,11-12)

O Deus fiel não se alegra com uma atitude petrificada de rejeição e de comportamento inflexível. Contudo, a clemência não exclui a advertência. Antes a supõe:

“Somente reconhece a tua iniqüidade, que transgrediste contra o SENHOR teu Deus; e estendeste os teus caminhos aos estranhos, debaixo de toda a árvore verde, e não deste ouvidos à minha voz, diz o SENHOR”. (Jr 3,13).

A fidelidade de Javé se alimenta de ternura, o povo é amado como os pais amam um filho pequenino:

“QUANDO Israel era menino, eu o amei; e do Egito chamei a meu filho”. (Os 11, 1).

Pai de todo povo, mas em especial dos pobres. “Pai dos órfãos e defensor das viúvas é Deus em sua santa morada” (Sl 68,6). Do mesmo modo deve se comportar quem crê em Deus, “ser pai para os órfãos” conforme prescrito em Eclo 4, 10. nessa linha, Jó aduz como prova de sua inocência: “Eu era pai dos pobres” (Jó 29, 16).

Amor de Deus que a Bíblia traduz como amor de Pai, mas que compara também com o amor de mãe:

“Porventura pode uma mulher esquecer-se tanto de seu filho que cria, que não se compadeça dele, do filho do seu ventre? Mas ainda que esta se esquecesse dele, contudo eu não me esquecerei de ti”. (Is 49,15).

O termo hebraico para dizer entranhas (rahamim) refere-se ao seio materno, no qual a mulher acolhe e dá a vida. Este vocábulo é usado para falar das entranhas do próprio Deus.
“Não é Efraim para mim um filho precioso, criança das minhas delícias? Porque depois que falo contra ele, ainda me lembro dele solicitamente; por isso se comovem por ele as minhas entranhas; deveras me compadecerei dele, diz o SENHOR”.(Jr 31,20)

A compaixão de Deus adquire esta dimensão maternal, profunda e terna[3]. O amor divino é comparado também com uma experiência feminina única e carregada de sentido:

“Por muito tempo me calei; estive em silêncio, e me contive; mas agora darei gritos como a que está de parto, e a todos os assolarei e juntamente devorarei”. (Is 42, 14)

Nos textos citados, Javé se revela como um Deus terno; um Deus pai e mãe, que conserva o povo de Israel no colo, do modo como um pai segura o filho sobre os joelhos. Um Deus que, à semelhança dos seres humanos – e com maior razão – dá a seus filhos o que eles pedem. A relação de Deus com seu filho, com seu povo, surge plena de um afeto delicado.

Quando, por um momento, perde a paciência com as faltas de seu povo, Javé sabe voltar atrás e retoma com fidelidade o apego perdido.

“Por um breve momento te deixei, mas com grandes misericórdias te recolherei;
Com um pouco de ira escondi a minha face de ti por um momento; mas com benignidade eterna me compadecerei de ti, diz o SENHOR, o teu Redentor”. (54,7-8).

Mas, ao mesmo tempo, a revelação bíblica nos fala de um Deus que faz exigências, que requer comportamentos concretos de fidelidade, que impõe mandamentos a seu povo; e que inclusive ameaça castigar os que não os cumprirem.

“Eu sou o SENHOR teu Deus, que te tirei da terra do Egito, da casa da servidão.
Não terás outros deuses diante de mim.
Não farás para ti imagem de escultura, nem alguma semelhança do que há em cima nos céus, nem em baixo na terra, nem nas águas debaixo da terra.
Não te encurvarás a elas nem as servirás; porque eu, o SENHOR teu Deus, sou Deus zeloso, que visito a iniqüidade dos pais nos filhos, até a terceira e quarta geração daqueles que me odeiam”.(Ex 20, 2-5).


Um Deus que zela pela observância da Aliança que firmou com seu povo. A eventual rejeição e a ameaça de castigo da parte de Javé é apenas o reverso de seu amor. Trata-se de um amor fiel que implica lealdade. Reconhecimento permanente do Deus que libertou da opressão e da carência em que vivia o povo no Egito, e constante estabelecimento da justiça e do direito na nova terra em que agora habita. Exigência também de “afeto e carinho” (Os 2,21) por parte do povo da Aliança.

Não se pode separar o culto que Deus deseja da prática da justiça; e essa união exprime um aspecto fundamental da fé no Deus da Aliança. O “verdadeiro jejum” é libertar os oprimidos, quebrar as correntes que os aprisionam. O culto a Deus exige justiça para com os demais, o reconhecimento do dom da filiação supõe a criação da fraternidade. Então será possível, como se diz repetidamente vezes na Bíblia, um culto “em espírito e verdade”. Mais uma vez, estamos diante das duas dimensões fundamentais da vida cristã: contemplação e compromisso, gratuidade e justiça.[4]

Essas duas vertentes devem alimentar-se mutuamente. Por isso devemos “praticar alegremente a justiça” (Is 64,4). A solidariedade com o pobre e o oprimido deve ser fonte de alegria, não de tensão. Deste modo, a ação de graças a Deus estará prenhe de compromisso presente e eficaz.


3. O Reino esta no meio de nós


À pergunta “que é Deus?” a Escritura responde: “Deus é Pai, é amor”. “Deus se manifestou a Jesus como Pai, mas o Pai se lhe manifestou como Deus”, diz J. Sobrinho.[5] Conhecemos o Senhor por suas obras; elas nos revelam – que Deus liberta porque é libertador, que Deus faz justiça porque é justo, que Deus se compromete porque é fiel e não o inverso, como nos inclinamos a pensar. Em efeito, Deus santifica porque é santo, dá vida porque é vida, porque Ele é quem é. Isto certamente expressa a afirmação que Javé fez sobre si mesmo a Moisés: “Eu sou o que sou” (“Eu sou a vida”), que já comentamos.

Passemos agora à outra pergunta, que também é tradicionalmente formulada com base na experiência de fé e na reflexão sobre ela: onde está Deus? É a pergunta que o salmista se faz:

“minhas lágrimas se tornaram meu pão de dia e de noite, ao me dizerem todo o dia: ‘Esse teu Deus onde se acha?’
Eu me lembro – e morro de saudades! – : eu avançava pelos átrios do Poderoso até sua casa no vozear dos gritos de louvor e de alegria com a multidão estrepitosa que fazia festa!
Com feroz hostilidade me insultam os inimigos que me dizem todo o dia: ‘Esse teu Deus onde se acha?” (Sl 42,4-5. 11).

“Esse teu Deus onde se acha?” Como já notamos no texto bíblico, a revelação de Deus e as questões mais radicais sobre ela emergem de um momento histórico preciso. Aqui neste salmo, elas surgem da vivencia do exílio, sofrimento e opressão que o povo judeu sofre na Babilônia; nessas circunstancias, um justo enfrenta a questão desafiadora de seus adversários: onde está teu Deus? O salmista, ao passo que afirma a própria fé, se interroga com ansiedade pela causa da ausência de Deus, ou seja, acerca do fato de que o Senhor parece ter-se esquecido dele e de seu povo. Também nós nos fazemos a mesma pergunta em certos momentos difíceis de nossa vida: onde está Deus?

Esta não é, contudo, uma questão que surge exclusivamente no sofrimento e na angustia. É uma expressão de fé. Não formulá-la configura um esquecimento que Javé repreende a seu povo:

“Ouvi a palavra do SENHOR, ó casa de Jacó, e todas as famílias da casa de Israel;
Assim diz o SENHOR: Que injustiça acharam vossos pais em mim, para se afastarem de mim, indo após a vaidade, e tornando-se levianos?
E não disseram: Onde está o SENHOR, que nos fez subir da terra do Egito, que nos guiou através do deserto, por uma terra árida, e de covas, por uma terra de sequidão e sombra de morte, por uma terra pela qual ninguém transitava, e na qual não morava homem algum?
E eu vos introduzi numa terra fértil, para comerdes o seu fruto e o seu bem; mas quando nela entrastes contaminastes a minha terra, e da minha herança fizestes uma abominação.
Os sacerdotes não disseram: Onde está o SENHOR? E os que tratavam da lei não me conheciam, e os pastores prevaricavam contra mim, e os profetas profetizavam por Baal, e andaram após o que é de nenhum proveito”. (Jr 2,4-8)

Perguntar onde está o Senhor? É querer estar perto dele, “colados” ao Deus de nossa fé ( cf. Dt 30,20), é desejar fazer nosso o seu projeto para a história humana. O Pai toma a iniciativa: “Tanto amou o mundo que lhe enviou seu próprio Filho” (Jô 3,16), para nos dizer que Ele é o Deus do Reino, e que este é a expressão do que os evangelistas chamam a vontade de Deus. Encontramos a Deus à medida que fazemos nossos seus desígnios sobre a história e sobre nossas vidas. Na oração que Jesus nos ensinou, depois de chamar a Deus de Pai e Santo, pede-se: “Venha a nós o teu Reino” (Lc 11,2); a isto a versão de Mateus acrescenta: “Faça – se tua vontade assim na terra como no céu” (Mt 6,10). Na realidade, ambas as frases tem fundamentalmente o mesmo sentido, posto que a vontade do Pai é precisamente que venha o Reino de vida e liberdade. Onde o Reino se estabelece, ali está Deus.

Se separamos Deus de seu propósito não cremos realmente nele, porque isso significa rejeitar seu reinado, seu desígnio de vida, amor e justiça na historia.

O Deus da Bíblia é inseparável do seu projeto, do seu Reino; por conseqüência, toda tentativa de encontrá-lo e compreendê-lo divorciando-o de seu Reinado é, em termos bíblicos, fabricar um ídolo, engendrar para si um deus a nossa imagem e desejo, confiar em alguém que não é Deus, cair na idolatria. Com efeito, um deus sem reino é um fetiche, obra de nossas mãos, negação do Senhor, porque tal separação é contrária à sua vontade. O Deus de Jesus Cristo é o Deus do Reino, é aquele que tem uma palavra e uma intenção sobre a historia humana.

Jesus vai ainda mais longe. Quando lhe perguntam quando virá o Reino, responde: “O Reino de Deus já está entre vós” (Lc 17,21). Esta é a novidade absoluta de seu anúncio. Jesus, o Messias, é o Reino. É o centro da obra criadora e redentora de Deus; “Todas as promessas feitas por Deus nele tiveram seu sim; e por isso dizemos por ele Amém à gloria de Deus (2Cor 1,20). Em Cristo encontramos a Deus: “quem me vê a mim vê o Pai” (Jô 14,9). Falar do Reino é falar de Jesus, que dele fez o núcleo de sua mensagem. Ele é o Deus que vem na historia fazendo desse momento o templo próprio para anunciar o dom do Reino. Aceitá-lo é comprometer-se a por em pratica suas exigências.

(...) Deus se revela em situações que só podem ser notadas se estamos atentos a elas, como na brisa, por exemplo.

“E Deus lhe disse: Sai para fora, e põe-te neste monte perante o SENHOR. E eis que passava o SENHOR, como também um grande e forte vento que fendia os montes e quebrava as penhas diante do SENHOR; porém o SENHOR não estava no vento; e depois do vento um terremoto; também o SENHOR não estava no terremoto;
E depois do terremoto um fogo; porém também o SENHOR não estava no fogo; e depois do fogo uma voz mansa e delicada.
E sucedeu que, ouvindo-a Elias, envolveu o seu rosto na sua capa, e saiu para fora, e pôs-se à entrada da caverna; e eis que veio a ele uma voz, que dizia: Que fazes aqui, Elias?” (1Rs 19,11-13).

Deus se manifesta no monte e na tormenta, no fogo em meio a trovões e relâmpagos. Mas também o faz – segundo o belo texto que acabamos de citar – no sussurro de “uma brisa tênue”[6], de uma carícia suave que acalma diante da tormenta que inspira terror. Através dessas diferentes expressões, que partem de fatos naturais, busca-se na Bíblia uma aproximação ao imensurável da plenitude da presença de Deus. Observemos, contudo, que em ambos os casos é o próprio Deus que se revela com idênticos apelos. Com efeito, a manifestação de Deus sob a forma de um vento suave não dispensa Elias da necessidade de cobrir o rosto ante a proximidade de Javé, nem suaviza os termos exigentes da missão que recebe. Por outro lado, a teofania da tormenta no monte não impede Moisés de falar com franqueza a Javé e provar de sua intimidade.
Deus está presente no cosmo, mas também se faz presença na história. O Deus vivo se acha e age no vir-a-ser da sociedade humana. Ele assim o quis.

A habitação de Deus na história atinge a plenitude na Encarnação. Encarnação em Jesus – o Galileu, o homem pobre de Nazaré –, que nos é relatada de forma cálida e concreta por um versículo do prólogo do evangelho de João: “E a Palavra se fez homem, acampou entre nós”. São modos de expressar a mesma certeza: a habitação de Deus na história; é um tema central na Bíblia, que com a Encarnação atinge sua mais completa realização.

(...) “Ele veio até a sua própria terra” (Jô 1,11), “se fez carne” (v. 14) são expressões que manifestam essa entrada na historia. “Carne” em linguagem bíblica significa o ser humano, às vezes com uma nuança de debilidade. João, nesta breve frase, sintetiza o tema do aniquilamento que Paulo desenvolve amplamente em (Fl 2). A Palavra entrou na historia, assumiu a condição humana, inclusive em seus aspectos mais frágeis: “Sendo rico, fez-se pobre por vós” (2Cor 8,9).

“Pôs sua morada entre nós” (v.14). Esta bela imagem é tomada do Antigo Testamento. No êxodo se diz que Moisés costumava tomar a Tenda e armá-la para si, fora do acampamento, dando-lhe o nome de ‘Tenda do Encontro’. E todo aquele que quiser consultar Javé devia dirigir-se à Tenda do Encontro, que estava fora do acampamento (Ex 33,7). Para os israelitas, a tenda foi muito importante durante a travessia do deserto rumo à Terra Prometida. A sombra desse toldo dá repouso, sentido e ânimo à longa caminhada, ela outorga antecipadamente o sabor da chegada à caminhada do povo durante quarenta anos.

Para João, a carne que a Palavra assume é tenda do novo encontro. Somos convocados a nos reunir nela; ser discípulo de Jesus é viver, crer, esperar sob esse toldo. Paulo expressa essa mesma idéia quando diz que o cristão faz parte do corpo de Cristo. A palavra “acampou” entre nós, prenhe de humanidade, alça-se de novo para o Pai: “E nós vimos a sua gloria,a glória que recebe do Pai como Filho Único” (v 14). João nos descreve um ritmo sugestivo: no principio, a Palavra estava em Deus, entra na história para trazer a vida e retorna ao Pai. Cristo se faz um de nós e nos eleva à contemplação da glória que Ele recebe do Pai. Por isso se dirá no v. 16: “Todos recebemos de sua plenitude graça após graça”. A palavra encarnada nos dá a vida que há em si, comunica-nos sua plenitude transformando-nos em filhos e filhas de seu Pai, “a graça e a verdade nos vieram por meio de Jesus Cristo” (v. 17).

O prólogo termina com uma reafirmação da transcendência de Deus: “Ninguém jamais viu a Deus” (v.18), a encarnação não diminui sua santidade, sua alteridade radical. Deus é totalmente Outro, não é deste mundo. Isso é o que a invisibilidade expressa. Mas o Filho o viu, por isso pode revelá-lo: “O Filho Único que está voltado para o seio do Pai revelou” (v. 18). João retoma a asserção de que para dar testemunho, para revelar, é necessário haver visto, haver experimentado. O Filho, que está face a face com o Pai é só quem pode manifestá-lo.


4. As faces do Senhor


O filho de Deus nasce no seio de um povoado, numa nação pouco importante em comparação com as grandes potencias de seu tempo. E mais ainda, encarna-se no setor dos pobres da marginalizada região da Galiléia, vive com os pobres e deles provém para inaugurar um reino de amor e justiça. Por isso não poucos terão dificuldade em reconhecê-lo. O Deus que se faz carne em Jesus é o Deus oculto de que nos falam os profetas, e o é precisamente à medida que se faz presente a partir dos ausentes e anônimos da história, daqueles que não são os dominadores, os grandes, os famosos, “os sábios e prudentes” (Mt 11,25).

No Antigo Testamento, Deus aparece como defensor do pobre, isto conduz à afirmação de que o descaso para com o despossuído significa um atentado contra o próprio Deus. Dir-se-á, por exemplo, no Livro dos Provérbios: “Oprimir o pobre é ultrajar o Criador; ser bom para os infelizes é honrar a Deus” (Pr 14,31; cf. ainda Pr 17,5; Lv 19,14; Eclo 34,20). Mas a identificação de Jesus com os últimos da sociedade é única e original (cf. Mt 25,31-46).

Vários textos nos aproximam desta idéia, por exemplo: “Quem acolhe uma destas crianças em meu nome a mim acolhe” (Mt 9,37); não esqueçamos, com efeito, que na cultura de então as crianças se achavam entre os desprezados[7]. Mas nenhuma passagem evangélica tem a força do sempre surpreendente texto de Mateus sobre o juízo final. Muitas coisas poderiam ser ditas a respeito desse texto, por hora interessa-nos insistir no que concerne à presença de Deus entre nós.

O célebre texto de Mt 25,31-46 nos esclarece duas identificações de grande alcance. Aquele que vem é o Filho do homem que “se sentará em seu trono de glória” (v 31). Muito se escreveu sobre esta expressão tão usada por Jesus para designar sua missão. ressaltemos que em diversas ocasiões – no próprio Mateus – ela se encontra num contexto de entrega da vida e de sofrimento (Mt 17,22; 26,2), de serviço (Mt 24,28) e de juízo escatológico (Mt 25,31), logo nos será dito que quem julga é o rei (v. 34). Filho do homem e rei designam a mesma pessoa.

Similar equação é estabelecida pelo evangelho de João num de seus textos mais densos e mais carregados de teologia (Jô 18,28 – 19,22). João ali concentra sua perspectiva sobre a realeza de Jesus (mencionada aqui 2 das 16 vezes encontradas em todo o evangelho joanino). Diante de Pilatos, representante do mais poderoso governador de seu tempo, o Senhor se reconhece como Rei, mas com outro tipo de reinado. “Então, Pilatos lhe disse: tu és rei? Jesus respondeu: sim, tu o dizes, eu sou rei” (Jô 18,37). Pouco antes havia esclarecido: “Meu Reino não é deste mundo” (Jô 18,36). Isto é, não se trata de um poder de dominação, como o da autoridade romana, mas de um poder de serviço. Trata-se de um rei que se identifica com os últimos e desprezados. Por isto zombam dele quando diz ser rei (cf. Jô 19,2-3). Este rei é apresentado com o homem (ou o filho do homem) (Jô 19,5).

Um texto de Marcos torna bem mais nítido o sentido desse poder de serviço:

E aproximaram-se dele Tiago e João, filhos de Zebedeu, dizendo: Mestre, queremos que nos faças o que te pedirmos.
E ele lhes disse: Que quereis que vos faça?
E eles lhe disseram: Concede-nos que na tua glória nos assentemos, um à tua direita, e outro à tua esquerda.
Mas Jesus lhes disse: Não sabeis o que pedis; podeis vós beber o cálice que eu bebo, e ser batizados com o batismo com que eu sou batizado?
E eles lhe disseram: Podemos. Jesus, porém, disse-lhes: Em verdade, vós bebereis o cálice que eu beber, e sereis batizados com o batismo com que eu sou batizado;
Mas, o assentar-se à minha direita, ou à minha esquerda, não me pertence a mim concedê-lo, mas isso é para aqueles a quem está reservado.
E os dez, tendo ouvido isto, começaram a indignar-se contra Tiago e João.
Mas Jesus, chamando-os a si, disse-lhes: Sabeis que os que julgam ser príncipes dos gentios, deles se assenhoreiam, e os seus grandes usam de autoridade sobre elas;
Mas entre vós não será assim; antes, qualquer que entre vós quiser ser grande, será vosso serviçal;
E qualquer que dentre vós quiser ser o primeiro, será servo de todos.
Porque o Filho do homem também não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate de muitos. (Mt 10,35-45).

Dois dos mais próximos seguidores de Jesus mostram não ter entendido coisa alguma quando lhe solicitam postos de destaque. O Senhor – uma vez mais – responde com uma pergunta: poderão, antes de mais nada, pagar – como ele o fará – o preço do sofrimento e da morte para anunciar o Reino da vida? Este anuncio já provocara uma primeira rejeição de Pedro (cf. Mc 8,31-32). Entrega aos demais e não glória pessoal é o que Cristo promete a seus servos. Os discípulos se indignam contra Tiago e João, não porque eles se confundiram quanto à significação da mensagem do Messias, mas por se terem adiantado a pedir o que todos eles desejavam para si. Com efeito não é fácil entender o que a acolhida do Reino implica. Uma das graves perversões do discípulo é crer que nossa condição de cristãos ou nossas responsabilidades na Igreja nos dão um poder de “senhores absolutos” sobre as outras pessoas. Isto é, poder que confere glória pessoal segundo as categorias dominantes entre os grandes de nossa sociedade.

Jesus, o Messias, subverte a ordem imperante. Buscando fazer com que seus discípulos avancem no caminho que iniciou, diz-lhes que grande é o servo e que o primeiro dentre todos é o “escravo”. Trata-se da “inversão messiânica”, que constitui o elemento central da mensagem evangélica. E isto começa com o próprio Senhor que, tendo-se feito um de nós, não veio para ser servido, mas para servir. Serviço não quer dizer aceitar passivamente que as coisas continuem como estão. Servir implica iniciativa e criatividade, conhecimentos e esforços para construir um mundo humano, justo e fraterno. O que o Evangelho abomina é o poder como dominação, a busca de que os outros nos reconheçam como “chefes”, não o poder compreendido como serviço.

No serviço ao pobre servimos ao Cristo de nossa fé, na solidariedade com os mais necessitados reconhecemos a humilde realeza do Filho do homem. Não há outro modo pelo qual venhamos a “herdar o Reino”. (...). cristo se oculta no rosto daqueles que tendemos a menosprezar por sua pouca importância social. A dificuldade de reconhecer neles o Senhor torna-se ainda maior quando se organizam para defender os próprios direitos e aprofundar a própria fé (cf. Puebla, 1146). Nesse momento se tornam conflitivos e provocam nos privilegiados de nossa sociedade resistência e hostilidade. Os privilegiados preferem uma religião que justifique e proteja seus interesses. À medida que o povo oprimido combate pelos próprios direitos e inicia o que os papas classificaram de “nobre luta pela justiça”, torna-se mais árduo para muitos perceber em seus rostos “os traços sofredores do Cristo, o Senhor, que nos questiona e interpela” (...)

A partir deles, o “Deus oculto” nos questiona e interpela, se encarna e se faz presente na história, contudo ao se identificar com os pobres do mundo, neles esconde sua ação e seu rosto. O Senhor oculta e simultaneamente revela sua presença na história, na vida e no sofrimento, nas lutas, na morte e nas esperanças dos condenados da terra: e também recorda, a partir dali, ali mesmo, que a rejeição ao Reino de vida motiva a ausência de Deus. A dialética entre transcendência e presença de Deus na história assim como a que se dá entre revelação e ocultamento, são apresentadas na Bíblia de um modo complexo e fecundo que exige discernimento histórico e atenção ao que o inesquecível João XXIII chamava de “os sinais dos tempos”.


4.1. A Hora chegou


O núcleo da mensagem de Jesus é o anuncio do Reino. O Antigo Testamento já proclamava a esperança no dia em que a misericórdia e a justiça de Deus reinariam plenamente. Jesus desenvolve seu ministério a partir das áreas marginalizadas e pobres de seu povo. Buscar o Reino e a justiça é pôr- se a caminho do encontro com Deus, é perguntar por “Jesus de Nazaré, o crucificado (que) ressuscitou “Mc 16,6). Este tema nos remete de imediato aos privilegiados do Reino, aos últimos da história e nos ajuda a compreender a espera e a busca do Reino num continente pobre.

O dia de Javé:

Uma das grandes linhas que atravessam o Antigo Testamento é a esperança escatológica no dia em que Javé se fará plenamente presente. Dizer escatológica não significa apenas apontar para o final da história, quer significar também uma clara atenção à atualidade, aos acontecimentos históricos nos quais tentamos descobrir a vontade de Deus. São muitas as maneiras com que a Bíblia apresenta “O dia de Javé”, que deve orientar desde já o nosso compromisso.

(...)Um texto de 2Pd ecoa esta perspectiva. No “dia do Senhor” (2Pd 3,10), tudo o que existe desaparecerá em beneficio do novo. O autor se interroga sobre o comportamento do crente: “visto como tudo vai ser destruído, compreendeis bem qual deve ser o vosso comportamento, a saber, santo e piedoso” (2Pd 3,11). Na fidelidade, o cristão espera e acelera “a vinda do dia de Deus” (2Pd 3,12); o texto estabelece: “Contudo, nós esperamos novos céus e nova terra, segundo a sua promessa, onde a justiça terá moradia estável” (2Pd 3,13). É disso que se trata. A habitação da justiça é um dos grandes temas bíblicos, ela caracterizará o mundo novo que o Senhor fará. O Apocalipse retoma o assunto com ênfase e amplitude. Escrito no propósito de manter viva a esperança de comunidades cristãs submetidas à perseguição e à morte, o livro nos recorda que a batalha central já teve lugar, e foi ganha. O que os cristãos padecem hoje não passa de seqüela – sem – futuro – desse combate; mas na verdade a vitória do Ressuscitado é definitiva, cabe a nós fazê-la presente na história. Isto se fará através de nossas ações. “conheço tuas obras”, dir-se-á repetidamente às setes igrejas (cf. cap. 2 e 3); sobre elas seremos julgados. Para dar testemunho dessa vitória devemos manter acesa nossa esperança no desígnio de Deus de criar um mundo no qual a vida reine.

“Um céu novo e uma terra nova” é como o Apocalipse (21,1) denomina essa situação a ser criada pelo Senhor. Ali se estabelecerá “a morada de Deus em meio aos homens”. Com linguagem de Aliança, João nos diz que Deus: “Habitará com eles, e serão o seu povo e ele será o ‘Deus – com – eles’” (Ap 21,3). O Senhor, o Emanuel, consolará, isto é, libertará seu povo.

E Deus limpará de seus olhos toda a lágrima; e não haverá mais morte, nem pranto, nem clamor, nem dor; porque já as primeiras coisas são passadas. (Ap 21,4)

O dia de Javé será, em última instancia, uma situação de plena comunhão com Deus e de fraternidade entre os seres humanos; duas faces de uma mesma realidade. Nem sofrimento, nem morte; antes alegria. Esse universo novo representa a gratuidade do amor de Deus, presente desde agora no devir histórico da humanidade.


4.1.2. O tempo se cumpriu


No início do seu evangelho, Marcos nos apresenta um sumário da pregação de Jesus.

“E, depois que João foi entregue à prisão, veio Jesus para a Galiléia, pregando o evangelho do reino de Deus”,
E dizendo: O tempo está cumprido, e o reino de Deus está próximo. Arrependei-vos, e crede no evangelho”. (Mc 1,14-15)

Texto breve, como todos os de Marcos, no qual cada palavra tem grande peso. Vamos segui-lo passo a passo.

Da Galiléia

João, “a voz que clama no deserto” , tinha anunciado a vinda do Messias e Pregado um batismo em sinal de arrependimento (Mc 1,3-4). Sua pregação lhe valeu a prisão efetuada pelo rei Herodes, colaborador do poder de ocupação romano, que nela via um questionamento a seu poder e privilégio. Marcos nos apresenta a missão de Jesus em relação com o Batista: “Depois que João foi preso”. Toque discreto com que o evangelista nos quer advertir de que a tarefa de Jesus encontrará também a resistência dos grandes de seu tempo. Hostilidade que chegará à prisão e a morte do Messias. Anúncio premonitório do preço a pagar pela missão que mal começa.[8]

“Jesus se encaminhou para a Galiléia.” Lá vivera. De lá prega para o mundo inteiro o reino de Deus. a Galiléia é uma região de pouca importância. Quase ignorada no Antigo Testamento, será chamada “comarca dos gentios” em Is 8,23 (texto citado por Mt 4,15-16); contudo, os evangelhos a mencionarão repetidas vezes. Trata-se de uma região desprezada pelos habitantes da Judéia, onde Jerusalém se localiza. A Galiléia é uma região provinciana, próxima a povoados pagãos e por eles influenciada em sua fala de sotaque acentuado (dirão a Pedro: “Tu também és deles; nota-se pela tua fala”, Mt 26,73), em seus costumes e em suas pouco ortodoxas práticas religiosas. Nada de bom pode provir da Galiléia, disso os judeus estão convictos. “Tu também és Galileu? Investiga e verás que nenhum profeta surge da Galiléia” (Jo 7,52), dirão os fariseus a Nicodemos, que tenta defender Jesus. Em conseqüência, Jesus Galileu (Nazaré se situa na Galiléia) anuncia sua mensagem a partir da insignificância e da marginalidade. Dos pobres e desprezados chega a palavra de amor universal do Deus de Jesus Cristo.

Esta missão o encaminha para o confronto com os grandes de seu povo que residem na Judéia, concretamente em Jerusalém. Eles, preocupados com este pregador itinerante em terras marginalizadas de seu povo, designaram espiões para ouvir suas palavras e ver as suas obras, inclusive para contradizê-lo (cf. Mc 2-3).[9] Jesus tem plena consciência de que o enfrentamento é inevitável. Jerusalém – centro do poder religioso e político de seu povo – será o lugar onde Ele padecerá. Ali, na Judéia, haverá uma tentativa de cortar violentamente seu anúncio do Reino: “A partir desse momento, Jesus começou a revelar a seus discípulos que era necessário ir a Jerusalém, padecer muito da parte das autoridades judias, dos sacerdotes – chefes e dos mestres da lei, ser condenado à morte, mas, ao terceiro dia, ressuscitar” (Mt 16,21). Pilatos ressaltará a origem galiléia de Jesus ao ordenar que escreva sobre a cruz “Jesus Nazareno, o rei dos judeus” (Jo 19,19).

“A Boa Nova de Jesus” é pregada por Jesus. Só a partir dele é possível captar o alcance de sua mensagem, a partir do Filho de Deus feito carne em meio à história humana (cf. Jo 1,14). Nessa história assim assumida, a pregação do Reino se faz a partir dos que não são escutados e lutam por existir e ser reconhecidos como seres humanos: os pobres e marginalizados. A missão de Jesus começa na Galiléia; ali recruta seus seguidores mais próximos. O cristo ressuscitado aparece na Galiléia (cf. Mc 16,7) e dali partem suas testemunhas para fazer “discípulos em todas as nações” (Mc 16,15-16; Mt 28,19).

Nessa mesma história, a de Jesus e a nossa, os poderosos e privilegiados se recusam a ouvir o chamado e reprimem os que, como João, Jesus e seus seguidores, dão testemunho do “Reino e sus justiça” (Mt 6,33). E continuam a fazê-lo. Em nossos dias, a cada ano no mês de março, recordamos o assassinato dessa testemunha do Deus da vida que é D. Romero. Morte que desde então se integra nos dias da Semana Santa à nossa celebração da ressurreição do Senhor.

Esse testemunho nos ajuda a entender que é necessário buscar e proclamar a vida e a libertação em Cristo avançando pelas trilhas de pedra e lodo pelas quais transitam os marginalizados e oprimidos da América Latina. Quando o Senhor vier para enxugar nossas lágrimas (cf. Is 25,8 e Ap 7,17; 21,4), provocadas pelo desejo de partilhar os sofrimentos dos pobres, lhe mostraremos também os nossos pés sujos. Ele vai nos compreender, porque hoje, à destra do Pai, seus pés devem conservar um pouco da poeira da Galiléia.


4.1.3. O reino está próximo


Com o testemunho de Jesus, o “tempo se cumpriu”. O dia do Senhor chegou.

Na Bíblia, utilizam-se principalmente dois termos gregos pra referir-se ao tempo: chronos e kairós. O primeiro, além de ser o nome de uma divindade grega, passou a significar os aspectos quantitativos, mensuráveis, controláveis do tempo. Trata-se aqui da sucessão temporal enquanto dimensão dependente do movimento dos astros. Realidade que por isso se mede com calendário e relógio à mão: “tal dia, tal hora”. É o aspecto do tempo ao qual estamos mais acostumados e que incorporamos a nossa vida diária: o cronológico. Nossas agendas no-lo recordam, às vezes com angustia...

O segundo termo mencionado se refere a um aspecto mais complexo. O kairós marca uma perspectiva mais qualitativa. Trata-se não tanto de uma hora ou de uma data, mas da densidade humana, ou seja, de sua significação histórica, daquilo que está em jogo. Há algo de kairós em nossa linguagem cotidiana. Quando, por exemplo, dizemos “há uma hora para tudo” ou quando se fala do “dia D” pouco antes da invasão aliada à Europa durante a II Guerra Mundial. Na Bíblia, o termo kairós significa o momento propício, o dia favorável, o tempo em que o Senhor se faz presente, se manifesta. “Este é o momento propício”, diz Paulo (2Cor 6,2; cf. ainda 1Tm 6,15; Hb 1,7).

No texto que comentamos, Marcos se refere a essa noção de tempo; fala por isso de kairós e não de chronos. Na expressão “o tempo se cumpriu”, é o kairós que se cumpre e não uma data fixada de antemão. Isto implica uma revelação especial de Deus na história com a qual Jesus se comprometeu. Por isso o Reino é isso. Não se trata de uma realidade puramente interior que acontece no fundo de nossas almas. É um projeto de Deus que ocorre no coração de uma história na qual os seres humanos vivem e morrem, acolhem e rejeitam a graça que os transforma a partir do interior. A realidade que se manifesta ao longo de um processos difícil a que alude a menção a João Batista, e que se faz sobretudo presente hoje com Jesus, o Messias. O Reino de amor e justiça que é o projeto de Deus para a história humana interpela toda pessoa.

Ser cristão é estar atento a esse kairós, a esse momento especial de manifestação de Deus em nosso aqui e agora. Isto é discernir os sinais dos tempos, como o indicava João XXIII às vésperas do Concílio Vaticano II.

O Reino é dom, graça de Deus, e é também exigência para nós. Sua proximidade torna ainda mais urgente essa dupla dimensão. Ambos os aspectos constituem o que o próprio Marcos chama de “o mistério do Reino de Deus” (4,11). Não é algo enigmático e secreto, mas uma realidade envolvente que escapa a toda manipulação e dentro da qual definimos o caráter e o sentido de nossa vida.

O Reino, desígnio livre e gratuito de Deus, é uma realidade dinâmica que dá o significado último da historia para o seguidor de Jesus. Sentido último que, contudo, não quer dizer que o Reino esteja situado cronologicamente ao final do devir histórico. Trata-se antes de uma realidade “kairologicamente” próxima, em pleno processo de cumprimento. Esse duplo aspecto está encoberto pelo termo escatologia, que se refere tanto ao futuro como à atualidade histórica. Isto é a um acontecimento já presente, mas que ainda não alcançou sua realidade plena. Visão dinâmica da historia, movida pelo dom do Reino.

Por outro lado, e em íntima conexão com o ponto anterior, o Reino de Deus implica uma exigência de comportamento. O discípulo de Jesus que aceita o dom do Reino responde a ele com uma conduta determinada. É a dimensão ética do Reino. “convertam-se”, esta exigência acompanha o dom do Reino e gera uma nova atitude para com Deus e o irmão. A conversão supõe uma ruptura, mas significa sobretudo empreender um caminho novo, sempre novo: “Creiam na Boa Nova”. Crer significa dizer amém a Deus, é declarar nossa fidelidade e aceitação ao Reino e a suas exigências.[10] E isso se expressa tanto na ação de graças a Deus, como na ação em favor do irmão. Nessa dialética se expressa o sentido do Reino. Isto exige de nossa parte transformar nosso presente, impedir os abusos dos poderosos e estabelecer relações fraternas e justas. Nesse comportamento se percebe a graça da presença do Senhor.


5. Á ética do reino


O Reino é graça, mas também exigência. É dom gratuito de Deus e é apelo de conformidade ao seu desígnio de vida. Isto é o que se pede do discípulo, sua vida transcorre entre a gratuidade e a exigência. O caminho para o Pai supõe fazer dos outros nossos irmãos e irmãs. Só acolhemos o dom da filiação quando forjamos uma autentica fraternidade entre nós. As bem – aventuranças de Mateus constituem por isso a carta magna da assembléia – a Igreja – dos discípulos de Jesus. Seguir seus passos se expressa em gestos para com o próximo, o pobre em particular, em obras de vida; nelas amor a Deus e amor ao próximo se entrelaçam, um supondo o outro.

Só podemos esclarecer a pergunta onde está Deus? se estivermos em condições de responder à interpelação do Senhor: “Onde está teu irmão?” (GN 4,9). Deste modo apressamos a história, ou seja, fazemos com que o Reino venha, que chegue o Kairós, não como uma fatalidade, mas como resultado da livre acolhida ao dom de Deus. Agindo como “homens livres” (1Pd 2,16), com nosso comportamento “esperamos e aceleramos a vinda do dia de Deus” (2Pd 3,12).


6. Por Que Crer?, A Fé e a Revelação


A revelação divina é a razão de ser da nossa fé, e, esta, a fé é o fundamento da Teologia (S Th., 1, q. 1, a. 2, ad 2m). Portanto, a revelação divina é o que há de mais importante na vida do cristão. Que é crer ou ter fé? É aceitar a revelação divina. Que é a Teologia? É a ciência (que nós temos) de Deus (revelada) por Deus. A fé é o fundamento de toda a nossa vida cristã. Sem ela – veremos – a caridade é mera fraternidade; a liturgia, teatro sacro; a confissão, psicanálise; o Evangelho, um mito venerável; e a morte seria, somente, a morte (Jean Guitton).

A teologia é a ciência da fé (...). O teólogo que perde a fé, perde a teologia. É que a fé em Deus, que revela, não só é o ponto de partida, mas o contínuo e permanente fundamento da teologia. Assim, a fé de nenhum modo depende da teologia, mas é a pesquisa teológica que depende intrinsecamente da fé. Na verdade, a teologia é a fé que procura compreender ou aprofundar os dados da revelação divina.


6.1. A Fé é uma Graça


A fé é uma graça; portanto, o querer tê-la pela força da nossa vontade não é condição para obtê-la necessariamente; isto é, não podemos alcançá-la por nós mesmos.
A fé é uma graça, é um dom gratuito, que Deus nos concede, dom preciosíssimo, que só frutifica quando o recebemos com a firme convicção de seu aspecto sobrenatural, alheio e independente da nossa razão.
A fé é uma graça que não obsta a razão, de tal sorte que esta, por mais que a aceite e deseje, jamais a obtém pelo raciocínio e vontade; o Maximo que a razão consegue é aceitá-la e justificá-la.
A fé não consiste no mero raciocínio; seria fria constatação; não fé.


6.2. A fé, a revelação e sua formulação em linguagem humana.


A revelação, ou o fato de Deus se mostrar ao homem, ocorre de modo natural, quando o homem, por si mesmo, com o uso de sua razão descobre Deus criador do universo visível, como diz S. Paulo em Rm 1,20, e também a revelação ocorre de modo sobrenatural, quando Deus mesmo se Adianta e se revela ao homem, mostrando-lhe seus desígnios, seus mistérios, sua vida divina.

Quanto à revelação divina ou sobrenatural, no cristianismo é Deus quem primeiro procura o homem, não é o homem que procura Deus simplesmente com seu senso religioso e místico.

Assim, a revelação divina se verifica por meio de palavras e gestos (mas principalmente por meio das primeiras) o que acontece através da história, em etapas sucessivas.

Certamente, a revelação não é, nem foi uma coisa abstrata. Deus se revelou na historia, nos seus contatos com os homens, de maneira absolutamente concreta.

Á Palavra de Deus, que revela os seus mistérios, nós respondemos “Amem”! “A fé é propriamente, uma resposta ao diálogo de Deus, à sua Palavra, à sua revelação”. Crer diz o Novo Catecismo, p.339, é dizer sim à revelação de Deus.

A fé é a acolhida da Palavra de Deus, que fala ao homem para instruí-lo. Para chamá-lo, e, principalmente, mas, justamente para chamá-lo, Ele se revelou a ele, lhe revelou seus desígnios, lhe fez conhecer o caminho, lhe revelou também a Si mesmo. Crer é receber este ensinamento.


7. Etimologia e significado


Revelação (“revelatio”, no latim; “apokalypis” no grego) significa descobrir, tirar o véu, fazer conhecer o oculto.
A revelação cristã é a manifestação das verdades sobre Deus, por Deus.
Ela se apresenta na Historia de modo sucessivo e parcelado. A Escritura, desde o primeiro livro do AT até o último do NT demora 15 séculos, mais ou menos, para ser composta. A tradição judia-cristã se desenvolve desde o início da humanidade, sendo que só no Cristianismo temos vinte séculos de prática e vivencia religiosa.

Espécies de revelação:

1- Pelas criaturas: o homem, em virtude de sua natureza racional, tem a possibilidade de descobrir e conhecer Deus, através da obra da criação.
2- Pela manifestação sobrenatural: ao homem, em virtude de sua natureza espiritual e somente mediante a via sobrenatural, é dado conhecer o mistério escondido de Deus, isto é, os seus eternos desígnios ou planos de Deus.
3- Pela visão final ou escatológica: em virtude de sua filiação divina o homem verá Deus na vida futura.
A constituição dogmática sobre a revelação divina, Dei Verbum, do Concílio Vaticano II, de inicio trata dessas três espécies de revelação, desdobrando a segunda em Revelação pelos profetas, que no AT anunciaram o Cristo, e Revelação pelo Filho, que é a própria manifestação de Jesus Cristo, vindo Ele mesmo, em pessoa, revelar-nos os mistérios do Pai (cf. Hb 1,1-2, texto fundamental).

Nessas três etapas de revelação notamos, igualmente, crescentes presenças de Deus: na primeira a sua presença de imensidade; na segunda, a sua presença de graça; na terceira, a sua presença de glória.

Mas a revelação natural é deficiente, para bem conhecer Deus não basta o livro da Natureza, nem é suficiente a linguagem natural do Criador que nele se contém; é imprescindível o livro da Bíblia e a tradição judaica-cristã, que contêm a sua linguagem sobrenatural.

Então, com a revelação divina, teremos um conhecimento de Deus ratificado e retificado, e, mais ainda, sobrenaturalizado.


7.1. A revelação do ponto de vista histórico


A religião da Bíblia funda-se em uma revelação histórica. Este fato a classifica à parte das demais religiões. Algumas religiões não recorrem a nenhuma revelação. O budismo, por exemplo, parte da iluminação inteiramente humana de um sábio. Outras religiões tem o seu fundamento e conteúdo em uma revelação celeste, mas atribuem a sua transmissão a algum fundador lendário.

Na Bíblia, pelo contrário, a revelação é um fato historicamente comprovável. Seus intermediários não são um personagem apenas, mas muitos, bem conhecidos e identificados. Suas palavras e testemunhos são conservados, seja diretamente, seja através de uma sólida tradição. A revelação bíblica não repousa no ensino de um único fundador, como é o caso do Alcorão. A revelação judia-cristã se desenvolve por muitos e muitos séculos, através de uma multidão de personagens e figuras, que convergem todas para o fato histórico de Cristo. Para nós cristãos, crer é acolher essa revelação, que nos chega a nós, trazida pela historia desde o inicio da humanidade.


7.2. O Deus do Antigo Testamento


O Deus do AT é ainda um Deus escondido (Is 45,15). Ele dirige os passos do homem sem que este compreenda o caminho (Pr 20,24). Antes mesmo que o homem se volte para Deus, Ele mesmo toma a iniciativa e lhe fala primeiro.
Como o meio oriental (onde se achava o povo bíblico) usava de artifícios puramente humanos para penetrar nos segredos do Céu (adivinhações, presságios, lançamentos de sortes, astrologia, sonhos, etc.), durante muito tempo conservaram-se no AT essas técnicas arcaicas, purificadas, porém, dos seus condicionamentos politeístas.
Assim, Deus confia sua revelação aos canais tradicionais, condescendendo com a mentalidade ainda muito imperfeita do Povo bíblico.
Porém, depois, com os profetas, Ele vai afastando as magias e as sortes; os falsos profetas são combatidos e escorraçados, até que a revelação pela Palavra (símbolo do “Logos” divino) predomina e vence.
A partir daí, a revelação se faz, também, por meio dos dons divinos da Inteligência, da Sabedoria e da Ciência, apelando para a reflexão bíblica (os livros sapienciais).
O que Deus revela é sempre de ordem sobrenatural. A revelação divina não tem por objetivo as ciências e as artes humanas.
Nascido de pais pecadores, o homem não sabe exatamente o que Deus quer dele. Então Deus revela seus planos, a começar por lhe traçar normas de conduta, de orientação religiosa, de instituições políticas e sociais (cf. os livros do Pentateuco, isto é, os cinco primeiros livros do AT).
Deus lhe revela também o sentido da História e dos acontecimentos pelos quais seu Povo deve passar. Historiadores, salmistas, profetas, sábios se aplicam a essa intelecção do sentido da Historia. Então os fatos dão crédito à palavra e conduzem os homens à fé.
Enfim, Deus revela, progressivamente, os segredos dos “últimos tempos”. Sua palavra se torna uma promessa. Revela-lhe o Salvador que há de vir, o Emanuel, o Deus conosco, que há de ser um servidor sofredor (ler os capítulos 52 e 53 de Isaías).
Assim, Deus que já se revelara a si mesmo nos fenômenos da natureza (no trovão da tempestade, na nuvem do céu, no fogo que abrasa, na brisa da tarde, etc.) culmina por dar aos homens um anúncio antecipado do Messias, que há de vir:... “a glória de Javé se revelará e toda a carne há de vê-la...”(Is 40,5).

A revelação, palavra de Deus à humanidade, diz Latourelle, é a primeira realidade cristã; é o mistério primordial, o que nos comunica todos os outros; é o acontecimento decisivo e primeiro do cristianismo; é a primeira das categorias que fundamentam toda pesquisa teológica; é o fato primeiro; o primeiro mistério e a primeira categoria do cristianismo.
Toda a Teologia vive da revelação divina, que é o seu inicio, meio e fim em que ela desenvolve, mediante a virtude da fé no testemunho que Deus dá de seu próprio Filho (cf. 1Jo 5,9).
A revelação é obra divina essencialmente salvífica. Deus não revela para satisfazer nossa curiosidade ou para aumentar nossos conhecimentos, mas para nos tirar da morte em que o pecado nos lançou e nos fazer viver para uma vida de felicidade eterna.
(...) Assim, Jesus Cristo é o centro, o cume, e a plenitude da revelação divina (cf. DV, 4). Mas dizer que Ele é o centro da revelação divina não significa fazer d’Ele o sujeito ou o objeto da Teologia. Quem se revela é Deus (verdadeiro sujeito e objeto da Teologia).

(...) Jesus cumpriu perfeitamente a função profética: Ele não desvenda um elemento do Plano de Deus, ou o sentido de um acontecimento, mas o Plano total, o que há de absoluto na relação da “Aliança” de Deus com o seu Povo, o “mistério” de que fala São Paulo (Rm 16,25-27; Ef 3,3-6; Cl 1,25-27).
Essa aliança entre Deus e o homem vem a ser nossa comunhão divinizante no mistério de Deus.
O Cristo é o perfeito revelador do mistério de Deus, pois os seus ensinamentos são de Deus, no sentido mais absoluto. Ele é a Palavra, aquela em que Deus se exprime. A partir daí, o magistério de Jesus cumpre (isto é, aperfeiçoa, completa e termina) a Lei e os Profetas. Em suma, é o magistério do próprio Deus: “A minha doutrina não é minha mas do que me enviou” (Jô 7,16; ver Tb 1,18; 6,46; 7,29; 12,49-50; 14,1-9; cf. Mt 11,27; Lc 10,22). A perfeita revelação de Deus só poderia vir de Deus.
Em Jesus Cristo coincidem: realidade revelada e ação reveladora. Cristo é ao mesmo tempo o mistério e a revelação do mistério, como diz De Lubac, citado por Latourelle.



[1] A Black theology of Liberation, Nova Iorque, Lippincott, 1970, 142.
[2] “O próprio termo justiça acabou por significar a salvação levada a efeito pelo Senhor e sua misericórdia” (João Paulo II, Dives in misericórdia, n. 4)
[3] João Paulo II escreve sobre o amor de Deus: “Pode-se dizer que este amor é totalmente gratuito, não fruto de mérito, e que, sob este aspecto, constitui uma necessidade interior: é uma exigência do coração. É uma variante quase ‘feminina’ da fidelidade masculina a si mesmo, expressa no hesed. Sobre esse substrato psicológico, rahamim gera uma escala de sentimentos, dentre os quais estão a bondade e a ternura, a paciência e a compreensão, isto é, a disposição de perdoar” (Dives in misericórdia, nota 52).
[4] Sobre a relação entre gratuidade e justiça, cf. G. Gutiérrez, Hablar de Dios desde el sufrimento Del inocente, Lima, CEP, 1986.
[5] E acrescenta: “Na metáfora ‘pai’ Jesus define o que há em Deus de origem absoluta e por isso penhor de sentido, e o que há de amor nessa origem, como fundamento último da realidade. Mas qualifica esse amor” (“Dios” in C. Floristan e J.J Tamayo [eds.], Conceptos Fundamentales, Madri, Cristiandad, 1983, 252). Amor que igualmente assume um rosto materno, segundo L. Boff, O rosto materno de Deus, Petrópolis, Vozes, 1979.
[6] Esta brisa recorda a metáfora do sopro vivificante que a Bíblia freqüentemente emprega para falar da discreta ação do Espírito.
[7] Condição de insignificância que as crianças partilham com as mulheres. Quando Mateus narra as multiplicações dos pães, fala de cinco mil e quatro mil homens e insiste “sem contar mulheres e crianças” (14,21; 15,38). Expressão semelhante encontra-se em Ex 12,37.
[8] No texto paralelo, Mateus alude igualmente a esse fato, mas parece sugerir que Jesus tem um conhecimento menos direto do assunto: “Quando ouviu que João havia sido entregue” (4,12).
[9] Além de desprezada, a região da Galiléia é considerada política e religiosamente suspeita de heterodoxia. A respeito, cf. G. Vermes, Jesus, o judeu, São Paulo, Edições Loyola, 1990.
[10] Nosso amém vem da mesma raiz do termo hebraico ‘emet, que significa verdade, fidelidade, firmeza, confiança.

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