quarta-feira, 29 de abril de 2009

MISTAGOGIA



Mistagogia:
o que é isso?


Mistagogia é uma palavra que está sendo bastante usada ultimamente no estudo da catequese, da liturgia, da teologia. O Concílio Vaticano II já havia decidido pela restauração do catecumenato, com seu tempo de mistagogia , para as pessoas que aderem pela fé a Jesus Cristo e querem fazer parte da comunidade cristã. O RICA (Ritual de Iniciação Cristã de Adultos) incorporou este tempo de mistagogia. Tanto o Diretório Nacional de Catequese, quanto o recente publicado Diretório Nacional 2 , insistem na dimensão mistagógica da formação cristã. O papa João Paulo II disse: “É mister (...) que os Pastores encontrem a maneira de fazer com que o sentido do mistério penetre nas consciências, redescobrindo e praticando a arte mistagógica , tão querida aos Padres da Igreja.” 3 Redescobrimos a função mistagógica da homilia, embora ainda poucos a coloquem em prática. Na teologia litúrgico-sacramental começa a se impor o método mistagógico , no qual se faz teologia partindo da análise do rito e da experiência do mesmo 4 . Numa carta escrita em preparação à 5ª Assembléia Geral do CELAM, o teólogo Jon Sobrino sugere que, em vez de insistir na mera doutrina, devemos oferecer mistagogia e credibilidade. “...cada vez é mais necessária a mistagogia que conduz ao mistério de Deus. Significa introduzir-nos num mistério que é maior, mas que não reduz a pequenez, que é luz, mas que não cega, que é acolhida, mas que não impõe” 5 .
Mas, afinal, o que é mistagogia ? É uma palavra derivada da língua grega, assim como ‘liturgia', ‘catequese', ‘teologia', ‘pedagogia', cirurgia', ‘eucaristia', ‘batismo', ‘crisma', ‘homilia', ‘leigo/a', ‘bispo', ‘presbítero'... e tantas outras, que já estão tão incorporadas à língua portuguesa que mal nos damos conta de que possui sua raiz em outro idioma. Assim acontecerá futuramente com ‘mistagogia', palavra hoje ainda desconhecida para muita gente.
‘Mistagogia' é composta de duas partes: ‘mist' + ‘agogia'. ‘Mist' vem de ‘mistério' e ‘agogia' tem a ver com ‘conduzir', ‘guiar'... Podemos traduzir: a ação de guiar para dentro do mistério. Há outras duas palavras relacionadas: 1) ‘mistagogo' ou ‘mistagoga' – é a pessoa que realiza a mistagogia, a pessoa que conduz para dentro do mistério, nos colocando em contato com este mistério, revelando-o; 2) ‘mistagógico' ou ‘mistagógica' – é o adjetivo derivado de mistagogia; por exemplo, na expressão ‘catequese mistagógica'. A palavra ‘mistério' vem da palavra grega ‘muein', fechar a boca, calar-se, ser iniciado. A iniciação é uma introdução ao caminho que liga o mundo visível a seu significado escondido; ela é feita em silêncio. As palavras portuguesas: murmúrio, mudo, mistério derivam da mesma raiz. ‘Mística', outra palavra relacionada, significa uma vida mergulhada no mistério.
O que está em jogo na mistagogia? Nada mais, nada menos que nossa relação com o mistério de Deus, que é o mistério de nossa própria vida e da história. Ninguém consegue ‘explicar' Deus. É impossível reduzir a realidade de Deus a conceitos racionais. É impossível reduzir a fé à aceitação de dogmas. É necessário que sejamos ‘iniciados' no mistério, não somente com palavras, mas principalmente através de ações simbólicas, através de ritos. No sentido original, são os ritos (as celebrações litúrgicas) que têm esta função mistagógica de nos conduzir para dentro do mistério 6 .
Na cultura atual, chamada de pós-moderna, onde percebemos os limites da razão, abre-se uma nova possibilidade para a liturgia como caminho mistagógico. Liturgia não é um tipo de ‘ginástica', ou uma execução de gestos mágicos ou puramente estéticos ou devocionais. Cada palavra, cada gesto, cada movimento... ‘contém' o mistério e nos faz mergulhar nele: no mistério de Deus, no mistério da vida, no mistério da história, em nosso próprio mistério.
bibliografia:

1 Este é o primeiro de uma série de ‘Grilos´ sobre mistério, mística, mistagogia.
2 CNBB, 2006.
3 Carta Apostólica Spiritus et Sponsa, por ocasião dos 40 anos da Constituição Conciliar sobre a Sagrada Liturgia (SC), n. 12, trad. provisória da CNBB.
4 Cf. GIRAUDO, Cesare. Num só Corpo; tratado mistagógico sobre a eucaristia, São Paulo, Loyola, 2003, principalmente pp. 1-24.
5 Aparecida: uma assembléia ‘com Espírito'. Carta a Ignacio Ellacuría, www.adital.com.br, 27/10/2006.
6 Daí o nome dos três sacramentos fundamentais, que são batismo, confirmação, eucaristia: “sacramentos da iniciação cristã”.
Autor: Ione Buyst, doutora em liturgia, autora de muitos livros e artigos tanto no campo acadêmico quanto no campo pastoral e popular. Atua na formação litúrgica como professora universitária e como assessora de cursos, retiros e encontros de pastoral e espiritualidade litúrgica. Membro da Rede Celebra

terça-feira, 28 de abril de 2009

hermenêutica

A palavra hermenêutica significa explicar ou interpretar. Nas Escrituras é usado em quatro versículos: João 1.42; 9.7; Hebreus 7.2 e Lucas 24.27. Esse termo pode ser traduzido por explicar ou expor. O termo Hermenêutica, portanto, descreve simplesmente a prática da interpretação.É necessário que o estudante das Escrituras procure descobrir o significado do texto que está sendo estudado. Queremos saber o que o texto significa. Para descobrirmos o significado do texto, teremos que verificar os vários componentes envolvidos na Hermenêutica: o autor, o texto e o leitor.

O AUTOR COMO DETERMINANTE DO SIGNIFICADO

Esse é o método mais tradicional para o estudo da Bíblia. O significado é aquele que o escritor, conscientemente, quis dizer ao produzir o texto. É importante verificar o que o autor disse em outro escrito. O que Lucas registrou em seu Evangelho poderá ser mais esclarecedor se comparado com Atos, ou registro de Lucas. Devemos levar em conta os idiomas da época: aramaico, hebraico e grego. Eles possuem um significado que não pode variar. Por outro lado, o texto está limitado ao que o autor disse exatamente? Por exemplo: lemos em Efésios 5.18: Não vos embriagueis com vinho. Alguém poderia dizer: Paulo proíbe que nos embriaguemos com vinho, mas acho que não seria errado embriagar-se com cerveja, rum, ou outra droga. Os escritos do apóstolo vão além de sua consciência, embora essas implicações não contradigam o significado original, antes fazem parte do texto e seu objetivo. Compreendemos então o mandamento paulino como um princípio, pois mesmo que o autor não esteja ciente das circunstâncias futuras, ele transmitiu exatamente a sua intenção.

O TEXTO COMO DETERMINANTE DO SIGNIFICADO

Alguns eruditos afirmam que o significado tem autonomia semântica, sendo completamente independente do que o autor quis comunicar quando o escreveu. De acordo com esse ponto de vista, quando um determinado escrito se torna literatura, as regras normais de comunicação não mais se lhe aplicam, transformou-se em texto literário. O que o texto está realmente dizendo sobre o assunto? Analisando o relato em Marcos 4.35-41 Qual é o objetivo do texto? Informar sobre a topografia do mar da Galiléia ou o mal tempo naquela circunstância? Seu objetivo era falar sobre Jesus Cristo, Filho de Deus. O significado que Marcos queria transmitir está claro: Mas quem é este que até o vento e o mar lhe obedecem? (4.41). O autor queria transmitir que Jesus de Nazaré é o Cristo, o Filho de Deus. Ele é o Senhor e até mesmo a natureza está sujeita a ele!

O LEITOR COMO DETERMINANTE DO SIGNIFICADO

Segundo essa perspectiva, o que determina o significado é o que o leitor compreende do texto. O leitor atualiza a interpretação do texto. Leitores distintos encontram diferentes significados, isso porque o texto lhes concede permitir essa multiplicidade. É relevante o que pensa o leitor? Isto poderia influenciar o sentido do texto? Se compreendermos que há diferença de interpretação entre um leitor crente e outro que é ateu, a resposta é sim! Contudo é necessário que o leitor esteja em condições de entender o texto. Ao verificar como as palavras são usadas nas frase, como as orações são empregadas nos parágrafos, como os parágrafos se adequam aos capítulos e como os capítulos são estruturados no texto, o leitor procurará compreender a intenção do autor. O texto, em sua íntegra, ajudará o leitor a compreender cada palavra individualmente. Assim sendo, as palavras, ou conjunto de palavras, ajudam a compreender o todo.

DEFINIÇÃO DAS REGRAS.

Uma utilização equivocada das ferramentas da Hermenêutica resultará em confusão e desvio, portanto, heresia. O que está envolvido no processo de interpretação? Que padrão terminológico o autor utilizou para dar significado ao texto? Que implicações se enquadram legitimamente no padrão por ele pretendido? Que significação atribui o leitor ao texto? Qual é o assunto do texto? Que compreensão e interpretação o leitor terá? Se as normas da linguagem devem ser respeitadas, que possibilidade significados é permitida pelas palavras de um texto? Foi reconhecido o gênero literário. As respectivas regras que o governam estão sendo obedecidas? O contexto prevê o significado dos objetos literários encontrados no texto?

SIGNIFICADO

O autor pretendia comunicar suas informações. Valeu-se, então, de um código de linguagem para transmitir sua mensagem. O significado não pode ser alterado, pois o autor, levando em consideração suas possibilidades ed interpretação, submeteu-se conscientemente às normas de linguagem com as quais o leitor está familiarizado. Da mesma maneira, os textos produzidos pelos autores das Sagradas Escrituras, movidos pelo Espírito Santo, têm implicações que abrangem o significado específico que eles, conscientemente, procuraram transmitir.Isso é razoável, uma vez que o leitor deverá compreender a linguagem utilizada.

IMPLICAÇÕES

As implicações ultrapassam os significados originais. O autor não estaria ciente de novas circunstâncias. Apesar disso, elas se enquadram legitimamente no padrão de significado pretendido pelo autor. Em Gálatas 5.2 lemos: Eu, Paulo, vos digo que, se vos deixardes circuncidar, Cristo de nada vos aproveitará. O significado específico está bem claro. Se os cristãos da Galácia cedessem às pressões dos judeus e se submetessem à circuncisão, estariam renunciando a fé, recusando a graça de Deus em Cristo e procurando, consequentemente, estabelecer uma relação diferente com Deus, baseada em suas próprias obras.Para os gentios da Galácia, aceitar a circuncisão equivalia renegar a Cristo! Hoje essa interpretação é ponto pacífico no seio da Igreja. Contudo, as implicações desse versículo ainda são proveitosas. No século 16, Lutero tomou as indulgências e a penitência proclamadas pela Igreja Católica como uma tentativa de estabelecer uma relação com Deus dependente das próprias obras. Embora Paulo não estivesse ciente das circunstâncias ocorridas no século 16, Lutero estava certo das implicações implícitas no significado da epístola.No século 19 e 20, formaram-se grupos religiosos que proclamam a guarda do sábado como obrigatória para a salvação. As implicações do texto paulino são claras: não podemos misturar graça e fé com as obras da Lei. É estritamente pela fé que somos salvos - fé sem circuncisão, fé sem indulgências, fé sem penitências, fé sem guardar o sábado. As implicações dos ensinos bíblicos ultrapassam as distâncias culturais e temporais e são luz para os problemas atuais. O mandamento olho por olho, dente por dente (Êx 21.23-25) implica em exercício da justiça. Enquanto grupos religiosos cortam a mão de uma pessoa por roubar um objeto, as Escrituras ensinam uma justiça equivalente (Êx 22.1): o objeto roubado mais uma multa. Não uma retaliação física.

SIGNIFICAÇÃO

Refere-se ao modo do leitor responder ao significado de um texto. Um cristão atribuirá significação positiva às implicações do texto naturalmente. Um descrente, pelo contrário, atribuirá significação negativa. Mesmo no corpo de discípulos cristãos, as aplicações de um mesmo texto poderá ser diferente: A Grande Comissão em Mateus 28.19,29 pode significar tornar-se um missionário em terra distante, ou um mantenedor, ou mesmo um pioneiro no próprio pais, um pastor local, ou um incentivo como professor de uma classe de Escola Dominical. Mas todas, apesar de diferentes, são respostas às implicações legítimas do significado.

O ASSUNTO DO TEXTO.

Qual é o assunto do texto a ser considerado? Em Gênesis temos a história da criação; em Juízes, a história política; Salmos, a poesia hebraica; Provérbios, a sabedoria prática; Evangelhos, a vida de Jesus. Devemos discernir qual o objetivo específico do escritor. Em Marcos 2.1-12 temos o relato da cura de um paralítico. Diversos detalhes são agregados ao texto, transmitindo-nos informações históricas, formas de construção de casas etc. Mas o que Marcos queria enfatizar realmente? Sua ênfase é percebida em vários lugares no próprio texto: 1. A questão levantada pelos escribas sobre quem tem poder para perdoar pecados (Mc 2.7); a declaração de Jesus de que o Filho de Deus tem esse poder (Mc 2.8-10); a realização de um milagre para legitimar sua declaração (Mc 2.11), a maneira como os ouvintes reagiram diante de sua declaração e do milagre (2.12): Nunca tal vimos. Marcos demonstrou que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, não existindo na Terra ninguém semelhante, pois somente ele tem autoridade divina para curar e perdoar pecados. Outra implicação legítima dessa exposição é que Jesus é o Senhor e Salvador.

COMPREENÇÃO E INTERPRETAÇÃO

A compreensão refere-se ao entendimento correto do significado pretendido pelo autor. Já que há apenas um significado, todo aquele que o compreender terá a mesma compreensão do padrão de significado do autor. Algumas compreensões podem ser mais completas do que outras, devido à maior percepção das várias implicações envolvidas. Como expressar essa compreensão? Há quase um número infinito de formas de expressar essa compreensão. Por exemplo: o Senhor Jesus, ao ensinar sobre a chegada do reino de Deus, valeu-se de várias parábolas. Alguns intérpretes alegam que não existe sinônimo perfeito. Ainda assim, um autor, com o propósito de evitar o desgaste de vocábulos já empregados, pode, conscientemente, desejar usar outros com o mesmo sentido. Isto porque o uso de sinônimos é previsto pelas normas da linguagem, as quais também admitem uma extensão de possíveis significados para a mesma palavra.Há dois princípios para orientar o trabalho de tradução: palavra por palavra, ou pensamento por pensamento. A dificuldade do primeiro é que em idiomas e culturas diferentes nem sempre os vocábulos têm a mesma exatidão. O segundo princípio tem, também, suas dificuldades. Isso fica evidente quando procuramos determinar como um autor usa os mesmos termos em lugares diferentes com o mesmo significado. O valor da equivalência em tal tradução fica muito mais comprometido do que no propósito de comparar outras passagens nas quais o autor bíblico usa as mesmas palavras com o mesmo significado.

NORMAS DE LINGUAGEM

As normas da linguagem, tentam especificar a extensão de significados permitidos pelas palavras de um texto. O termo fé, por sua vez, possui ampla extensão de significados no Novo Testamento. Pode ser mera aceitação mental de um fato; em outros contextos, confiança plena; ou ainda, um conjunto de crenças. O termo fé, contudo, não pode significar algo incompatível com o contexto, como: ritual do batismo. As Testemunhas de Jeová atribuem um significado à palavra Geena que é totalmente estranha a sua natureza. Afirmam que essa palavra deve significar aniquilamento, destruição eterna, punição eterna. Onde encontramos esse termo? Leiamos Mt 5.22,29,30; 10.28; 18.9; 23.15,33; 9.43,45,47; Lc 12.5; Tg 3.6. Algum desses versículos transmite a idéia de aniquilamento? Ou refletem um estado contínuo distante da presença de Deus? Atribuir à palavra geena um significado inadequado é um equívoco, segundo as normas de linguagem. Todo o contexto atribui à palavra geena o significado que conhecemos. Portanto, uma palavra ou frase possui uma extensão de significados. A tarefa do interprete é descobrir qual o significado pretendido pelo autor. Ao fazê-lo, estará se orientando pelas normas de expressão. Felizmente, as normas da linguagem limitam o número de possibilidades, de modo que apenas uma delas terá o significado que interessa ao autor. Por isso, o autor bíblico se manteve cuidadosamente dentro desses limites, a fim de ajudar os seus leitores a compreendera sua mensagem. O contexto é fundamental para reduzir os significados possíveis a apenas um significado específico.

RECONHECENDO O GENERO LITERÁRIO

Quais formas literárias estão sendo usadas pelo autor? Diferentes gêneros literários estão presentes na Bíblia. Obviamente, como os escritores da Bíblia tinham por finalidade compartilhar o significado do que escreviam, submeteram-se às convenções literárias de seu tempo. Se o leitor não ponderar esse fato, será impossível a compreensão do significado.

CONTEXTO

O contexto facilita a compreensão do significado pretendido pelo autor. Devemos entender o contexto literário como sendo aquilo que o autor procurou dizer com os símbolos utilizados antes e depois do texto em questão. Portanto, quando nos referimos ao contexto, aludimos ao padrão de significado compartilhado pelo autor nas palavras, orações, parágrafos e capítulos presentes no texto. Paulo (Rm 4.1-25) e Tiago (Tg 2.14-26) usam o termo fé com significados diferentes. Será problemático admitir que os dois escritos queriam dizer, um conjunto de crenças. Maior dificuldade haverá se assumirmos que Paulo está falando de uma mera aceitação do fato. E daí dizer que Tiago refere-se a uma verdadeira confiança. Todavia, está claro, pelo contexto, que Paulo se refere à verdadeira confiança (Rm 4.3,5); e Tiago à mera aceitação do fato (Tg 2.14,19).O livro Raciocínios a base das Escrituras (TJ) procura explicar 1 Co 15.29 associando-o a dois textos remotos (Rm 6.3; e Cl 2.12). Desprezando o contexto (capítulo 15), que se refere à ressurreição e sua veracidade, não está focalizando a condição espiritual do mundo em relação a Deus, como ocorre nas outras referências. Encontramos em 1 Co 15 um credo da Igreja referente à ressurreição que Paulo está citando.

O ESPÍRITO SANTO E A INTERPRETAÇÃO DA BÍBLIA

A Bíblia, como produto da inspiração divina, é a Palavra de Deus e revela aquilo em que os cristãos crêem (regras de fé) e como eles vivem (regra de prática). Os termos infalibilidade e inerrância são freqüentemente usados para descrever a fidedignidade da Bíblia. Tudo quanto os autores desejavam transmitir com respeito a assuntos de fé (doutrina) e prática (ética) é verdadeiro. O termo inerrância significa que tudo quanto está escrito na Bíblia (informações históricas, geográficas, científicas etc.) corresponde à verdade e não pode induzir ninguém ao erro. Um fato determinante, ultrapassando as fronteiras do tempo, envolve aquilo que o autor, conduzido pelo Espírito, desejou transmitir em seu texto. Consideremos Isaías 11.12, onde o profeta narra que Deus recolherá os dispersos de Judá desde os quatro cantos da Terra. O que ele quis dizer com esta declaração? Teria sido: Quero que saibam que a Terra consiste em quatro cantos e Deus trará de volta o seu povo desses quatro lugares? A Terra não tem nenhum canto. Pretendia Isaías afirmar algo sobre geografia? Seu propósito era falar do futuro ajuntamento do povo de Deus de todas as partes da terra. Sua declaração portanto pode ser considerada infalível e inerrante.

REGRAS PARA INTERPRETAÇÃO

É necessário usar as diferentes regras para a interpretação dos gêneros literários presentes na Bíblia. Uma parábola, uma narrativa, uma poesia, devem ser interpretadas conforme as regras. Note alguns exemplos:

PROVÉRBIOS

São declarações sucintas que empregam geralmente linguagem metafórica para expressar uma verdade geral. Contudo, os Provérbios não são leis, nem promessas. São observações gerais extraídas de um olhar sábio e cuidadoso dos fatos do dia-a-dia.

PROFECIA

Uma das regras da literatura profética envolve as profecias de julgamento. Por exemplo: Jonas 3.4. O profeta proclama à cidade de Nínive: Ainda quarenta dias, e Nínive será subvertida. Quando os ninivitas ouviram esta mensagem, proclamaram um jejum, e vestiram-se de pano de saco, desde o maior até ao menor (Jn 3.5) e o rei decretou um período de luto e arrependimento. A falta de julgamento divino fez dele um falso profeta? A regra para esse tipo de profecia encontra-se em Jeremias 18.7,8: No momento em que eu falar contra uma nação e contra um reino, para arrancar, e para derribar, e para destruir, se a tal nação, contra a qual falar, se converter de sua maldade, também eu me arrependerei do mal que pensava fazer-lhe. Por outro lado, encontramos sectários anunciando a volta de Cristo, marcando datas, e as mesmas sempre falhando. Não seria legítimo entendermos que uma mudança na sentença seria semelhante à mudança de direito: não vos pertence saber os tempos ou as estações que o Pai estabeleceu pelo seu próprio poder (Atos 1.8).Os mesmos princípios de Hermenêutica devem ser observados em outros gêneros.


Autor :
Matéria extraída de uma ou mais obras literárias.
Fonte:
Bíblila Apologética

quarta-feira, 22 de abril de 2009

Noções gerais da Bíblia

Noções Gerais da Bíblia



PRÓLOGO

A Bíblia é um livro difícil. Difícil porque é antigo, foi escrito por orientais, que têm uma mentalidade bem diferente da greco-romana, da qual nós descendemos. Diversos foram os seus escritores, que viveram entre os anos 1200 a.C. a 100 d.C. Isso, sem contar que foi escrita em línguas hoje inexistentes ou totalmente modificadas, como o hebraico, o grego, o aramaico, fato este que dificulta enormemente uma tradução, pois muitas vezes não se encontram palavras adequadas.
Outra razão para se considerar a Bíblia um livro difícil é que ela foi escrita por muitas pessoas, ás vezes até desconhecidas e em situações concretas as mais diversas. Por isso, para bem entendê-la é necessário colocar-se dentro das situações vividas pelo escritor, o que é de todo impraticável. Quando muito, consegue-se uma aproximação metodológica deste entendimento.
Além do mais, a Bíblia é um livro inspirado e é muito importante saber entender esta inspiração, para haurir com proveito a mensagem subjacente em suas palavras. Dizer que a Bíblia é inspirada não quer dizer que o escritor sagrado (ou hagiógrafo) foi um mero instrumento nas mãos de Deus, recebendo mensagens ao modo psicográfico. É necessário entender o significado mais próprio da 'inspiração' bíblica, assunto que será abordado na continuação.
Entre os católicos, o interesse por conhecer a Bíblia praticamente começou após o Concílio Vaticano II, ou seja, a partir dos anos '60, enquanto os Protestantes há muito se interessam por estudá-la. Não quero adentrar aqui na histórica polêmica religiosa que cerca a leitura e a interpretação da Bíblia, ressuscitando vetustas divergências. Apenas vale salientar que uma série de enganos podem advir de uma interpretação bíblica literal, porque uma interpretação ao "pé da letra" não revela o sentido mais adequado de todas as palavras.
Para que não aconteça conosco incidir neste equívoco, devemos aprender a nos colocar na situação histórica de cada escritor em cada livro, conhecer a situação social concreta da sociedade em que ele viveu, procurar entender o que aquilo significou no seu tempo e só então tentar aplicar a sua mensagem ás nossas circunstâncias atuais.


NOÇÕES GERAIS BÁSICAS
1. O que é a Bíblia?
Definição do Concilio Vaticano II:
"A Bíblia é o conjunto de livros que, tendo sido escritos sob a inspiração do Espirito Santo, têm Deus como autor, e como tais foram entregues à Igreja".
TESTAMENTO (novo ou antigo): é a tradução da palavra hebraica "berite" que significa a aliança de Deus com o povo por Moisés. Na tradução dos 70 a palavra "berite" foi traduzida por "diatheke", que em grego quer dizer aliança, contrato, testamento.
OBS: A 'tradução dos 70' é uma das versões mais antigas da Bíblia. Segundo a tradição, este trabalho teria sido realizado por 70 sábios da antiguidade.
2. Quais as partes que compõem a Bíblia?
A Bíblia se divide em duas partes principais: o Antigo Testamento e o Novo Testamento. O Antigo refere-se ao período anterior a Jesus Cristo e o Novo se refere ao período cristão. Cada uma destas partes se compõe de diversos 'livros', escritos em épocas históricas diferentes. A seguir, a relação dos livros com uma breve referência ao conteúdo deles.

LIVROS DO ANTIGO TESTAMENTO
l. Pentateuco (cinco primeiros livros: Gênesis, Êxodo, Levitico, Números, Deuteronômio)
2. Josué (narra a entrada do povo de Deus na Palestina)
3. Juizes (narra a conquista da Palestina)
4. I e II de Samuel (relatos da época de Saul e Davi, continuação da conquista)
5. I e II dos Reis (relatos sobre Salomão e seus sucessores)
6. I e II das Crônicas (continuação dos relatos sobre os outros Reis)
7. I e II dos Macabeus (continuação do período dos Reis)
8. Livro de Rute (faz alusão ao universalismo. Noemi era pagã e se inseriu no povo de Deus).
9. Livro de Tobias, Livro de Judite, Livro de Ester (pertencem ao gênero de contos. São livros do tempo do exílio, quando se apresentavam exemplos de abnegação ao povo oprimido, convidando-os a suportar o sofrimento).
10. Livro de Isaías (cap.l a 39 são do próprio escritor; cap. 40 a 55 são de discípulos; cap.56 a 66 são de outros escritores posteriores)
11. Livro de Jeremias (ditado por este a Baruc, seu secretário)
l2. Livro de Ezequiel (um dos profetas maiores)
l3. Livro de Daniel (tem um conteúdo apocalíptico )
l4..Livro de Jó (do gênero conto, procura demonstrar que não só os bons são felizes. Tem por objetivo combater uma idéia comum de que só os ricos eram os abençoados por Deus).
15. Livros Sapienciais (Eclesiastes ou Qohelet; Eclesiástico ou Siráside; Provérbios, Sabedoria e Cântico dos Cânticos). São reflexões de cunho acentuadamente humanístico, aproveitamento do saber oriental.
16. Livro dos Salmos (coleção de cantos litúrgicos).
17. Profetas Menores: Oséias, Joel, Amós, Abdias, Jonas, Miquéias, Naum, Habacuc, Sofonias, Ageu, Zacarias, Malaquias (chamados menores não com relação à sua importância, mas ao tamanho de seus escritos).

LIVROS DO NOVO TESTAMENTO
1. Evangelhos sinópticos (Mateus, Marcos e Lucas - têm muitas semelhanças entre si ).
2. Evangelho de João (maior desenvolvimento teórico, influência filosófica de época)
3. Atos dos Apóstolos (narram a missão dos apóstolos após a Ressurreição de Cristo)
4. Epístolas de Paulo (historicamente, os primeiros escritos do NT)
5. Epístolas Católicas (Pedro, Tiago, Judas): dirigidas a todos os fiéis, por isso, universais.
6. Apocalipse (escrito por João, na base de códigos, símbolos).


INSPIRAÇÃO
Um dos principais conceitos a ser examinado para uma melhor compreensão da Bíblia é o de inspiração. O que significa dizer que os livros bíblicos são inspirados, de onde vem esta inspiração, até que ponto o que é escrito representa a mensagem de Deus ou do hagiógrafo (escritor sagrado)? Ao longo da história, os estudiosos procuraram esclarecer este conceito básico e, é claro, sempre houve divergências entre eles. Apresentamos aqui algumas reflexões sobre este importante conceito.
Na inspiração distinguimos dois aspectos: dogmático e especulativo.
0 dogmático pode ser expresso como resposta à pergunta: por que acreditamos que a Bíblia é um livro inspirado? Isto não se pode provar pela própria Bíblia. Busca-se então provar pelo fundamento histórico. Os evangelhos, por exemplo, são históricos. Há uma tradição desde os tempos dos Apóstolos que cita a Escritura como autoridade divina ( Mt 1, 22; Mt 22, 31; Mc 7,10; Jo 10, 35; At 1,16; Lc 22, 37; Heb 3, 7; 10,15 ). Em 2Tim 3,16, aparece pela primeira vez a palavra 'theopneustos', ou seja, inspirada por Deus.
0 especulativo pode ser expresso como resposta à pergunta: em que consiste a inspiração? Este é mais complicado e será exposto com mais detalhes.

a) Modo da inspiração
É muito discutido o modo como se dá a inspiração do escritor sagrado. Bañez afirmou que era um ditado. Mas em II Mac 2, 19-23, o autor se refere a um resumo de 5 livros em um só, cujo resumo lhe custou "suores e noites de vigília". Como é que foi um ditado se houve o esforço dele para elaborar a síntese? Do mesmo modo Lucas (Lc l,1) escreve: "depois de haver diligentemente investigado tudo desde o principio, resolvi escrever... ", logo não foi simplesmente um 'ditado' da parte de Deus.
Em reação à teoria do ditado veio outra que disse o contrário: a inspiração é a aprovação que a Igreja dá ao livro. O fato estar colocado no cânon é a garantia da própria inspiração. Esta tese foi defendida por poucos e não teve grande aceitação nos meios católicos.
O Cardeal Franzelin propôs uma nova fórmula: nem tudo é de Deus nem tudo é do homem, mas as idéias são de Deus e as palavras são do homem. Obteve um certo sucesso, mas ainda não explicou de todo. Sto. Tomás de Aquino propusera a teoria da "causa instrumental": são os dois ao mesmo tempo - Deus e o Homem. Ambos estão presentes em toda a obra, Um é o autor principal e o outro o autor secundário. A inspiração eleva, sublima as faculdades do autor. Pode até ser admitida esta teoria, entretanto, convém lembrar que tudo que está na Bíblia é inspirado, embora nem tudo seja revelado.

b) Funcionamento psicológico da inspiração
Em II Mac, conforme mencionado acima, o autor se refere a um resumo do livro que um certo Jazão escreveu. De 5 volumes ele reduziu a um só. Como dizer que isto é palavra inspirada por Deus, como se explica aí a inspiração divina?
Comecemos por analisar as operações do intelecto: apreensão, juízo e raciocínio. Elas seguem um grau de aprofundamento e refinamento do saber. Pode-se ter uma inspiração de Deus logo no primeiro momento (na apreensão), como se pode ter depois, no juízo ou também nos dois. Quando a inspiração é logo na apreensão, se diz 'revelação'. Quando, como no caso do II Mac, a apreensão é do autor, a inspiração se dá no segundo momento, ou seja, no juízo, enquanto na apreciação que ele faz da obra está sendo iluminado pelo Espírito Santo. Na confecção destes livros, a questão da inspiração é que o autor estava iluminado pelo Espirito Santo para dizer o fato corretamente, sem poder errar no julgamento. Embora ele não esteja consciente disso, a ação do Espírito Santo está sendo exercida no seu intelecto.
Mas, pode-se questionar: como se sabe se ele foi ou não inspirado quando nem ele mesmo pode perceber isso? Aí passa a ser uma questão de fé. Tenta-se explicar o fato, mas não se afirma que seja assim. 0 discernir se o livro é ou não inspirado, dado o que acontece com o autor, é alçada da Igreja, que também é inspirada pelo Espírito Santo. É uma questão fundamentalmente de fé.
Por isso, para a definição do livros autênticos, reconhecidos pela Igreja Católica, os Cânones foram aprovados em Concílios, nos quais se discutiram certas dúvidas a respeito de alguns livros, se eram ou não inspirados. Nas discussões, procurou-se ver na historia da Igreja, desde os cristãos primitivos até aquela época, quais os livros que durante os séculos sempre foram lidos nas Igrejas e, baseada no consenso, ela constituiu o cânon. Sem dúvida, a tradição antiga é mais fidedigna, pois está mais próxima dos tempos apostólicos.
Mas, voltando ao conceito do juízo, ele pode ser especulativo ou prático. Especulativo quando tem por fim o verdadeiro; prático guando tem por fim o bem. No caso de Jonas, por exemplo, o juízo do autor não foi especulativo, mas prático. Jonas teve o sonho em que Deus o mandava pregar em Nínive. Ora, raciocinou ele, Javé é Deus de Israel, e não deve ser falado aos pagãos. Então tomou o navio para outro lugar, e aí entra a história da baleia... A finalidade do autor era convencer a todos que Javé era o Deus universal, contra uma certa corrente judia que negava fato, ou melhor, não gostava da idéia.
Para se entender cada página da Bíblia deve-se ter em mente a finalidade, a intenção do autor ao escrever cada parte do livro. Não se pode abrir o livro em qualquer parte e ler tudo com o mesmo espirito. Na antiga concepção de inspiração (ditado) não se considerava este problema. Tudo que lá estava se acreditava "ao pé da letra". Não se podia duvidar. Mas esta é hoje uma prática mais comum em algumas igrejas protestantes, geralmente praticada por pessoas com conhecimentos teológicos limitados e reducionistas.
Uma conseqüência direta da inspiração é o dom da inerrância. Se o livro é inspirado, logo o que contém é verdade. Porém esta verdade não está ali imediatamente evidente, ela precisa ser alcançada pela reflexão animada pela fé, ou seja, a razão e a fé ajudando-se mutuamente.


ORIGEM E FORMAÇÃO DA BIBLIA
1. Indícios e evidências históricas
O período histórico da formação da Bíblia situa-se entre 1100 a. C. ou 1200 a. C. a 100 d. C. Provavelmente, a mais antiga parte escrita da Bíblia é o Cântico de Débora, que se encontra no livro dos Juízes (Jz, 5).
Quando os hebreus chegaram a Canaã, já havia na terra um certo desenvolvimento literário, como por exemplo, o alfabeto fenício (do qual se derivou o hebraico), que já existia no século XIV a. C. Os judeus chegaram lá por volta do século XIII a.C. Outro documento desta época é o calendário de Gezér, que data mais ou menos do ano 1000 a.C. É uma indicação de datas para uso dos agricultores. É o documento mais antigo encontrado na Palestina. Outro documento também muito antigo é o sarcófago do Rei Airam, que contém uma inscrição e foi encontrado nos séculos XIV ou XV a. C., em Biblos. Há ainda umas tabuletas encontradas em Ugarit (em 1929), onde estão escritos uns poemas semelhantes aos salmos, datando dos séculos XIV ou XV a. C.
Além destes, há outros documentos provando que já havia uma escrita na Palestina, antes dos hebreus chegarem lá. A inscrição do túmulo de Siloé (700 a. C.), explicando como foi feito; os "óstracon", de Samaria, onde há uma espécie de carta diplomática, são documentos que provam a continuidade de uma atividade literária. Em Juizes 8,14, o autor descreve um acontecimento ocorrido mais ou menos em 1100 a.C. E em que língua foi escrito este fato pela primeira vez, na época em que aconteceu? Provavelmente no alfabeto fenício (pré-hebraico).

2. A tradição oral e a tradição escrita
A parte mais antiga da Bíblia remonta justamente deste tempo (1100 a.C.), quando a escrita ainda não estava bem definida, e é oral. Desde este tempo já se fora criando uma tradição, que existia oralmente e era transmitida aos novos pelos mais velhos nas reuniões que havia nos santuários. Por este tempo, só eram relatados os acontecimentos do deserto, do Sinai, da aliança de Deus com o povo. Mas os jovens queriam saber o que havia acontecido antes disto. Então foram sendo compostas as histórias dos Patriarcas. Mas, e antes deles, antes de Abraão? Passaram à história da criação do mundo. Por isso, se afirma que a parte mais antiga da Bíblia é o Cântico de Débora, no livro dos Juizes. A partir daí, fez-se um retrospecto didático-histórico.
Como dissemos, estas histórias iam sendo passadas oralmente de pai a filho, nos santuários. Acontece que nem todos iam para os mesmos santuários, o que motivou a existência de pequenas diferenças na catequese do norte e na do sul. A tradição do sul foi chamada de JAVISTA (J), pois Deus era tratado sempre por Javé; a do norte se chamou ELOISTA (E), porque Deus era tratado como Eloi.
A tradição oral existiu até os tempos de Daví, quando foi escrita a tradição javista; meio século depois, foi escrita também a eloista. Por volta de 721 a.C., na época, da divisão dos reinos, quando Samaria foi destruída pelos assírios, muitos sacerdotes do norte fugiram para o sul e levaram consigo a sua tradição. A partir de então, as duas foram compiladas num só escrito.
Falamos das duas tradições: uma do norte e outra do sul. Mas não existiam apenas estas duas, que são as principais. Há ainda a DEUTERONOMICA (D), encontrada casualmente em 622 a. C. por pedreiros, que trabalhavam num templo. Corresponde ao livro Deuteronômio da Bíblia atual. Após esta, surgiu a SACERDOTAL (P), nova compilação das catequeses antigas de Israel, datada do século VI a.C. Ao fim, estas quatro tradições foram combinadas entre si e compiladas em 5 volumes, dando origem ao Pentateuco da Bíblia atual. Na tradição Javista, Deus é antropomórfico. Na Sacerdotal, Deus é poderoso, está acima do tempo, o que significa um progresso no conceito de Deus que o povo tinha. A redação do Pentateuco se deu pelo ano 398 a.C. e compreendia a primeira parte da Bíblia judaica.
A partir de Josué, a tradição continuou oral, para ser escrita somente por volta de 550 a.C. E foram escritas do modo como o povo contava. Por isso não se pode dar a mesma importância histórica aos fatos descritos nestes livros em relação a outros posteriores, pois alguns fatos narrados foram baseados na tradição popular, enquanto que outros foram baseados em documentos de arquivos (anais do Reino). Este é um grande desafio para os estudiosos e também uma fonte de divergências.

3. Os Intérpretes - Profetas e Sábios
Durante muito tempo, os profetas foram os orientadores do povo de Deus. Os livros proféticos resumem os seus ensinamentos, e na sua maioria foram escritos só mais tarde, por seus seguidores. Somente por volta do ano 200 a.C. é que foram redigidos os livros proféticos. Os livros Sapienciais foram o resultado de um estilo literário que esteve em moda durante muito tempo, na época posterior ao exílio. São umas reflexões humanistico-religiosas. Passados os profetas, surgiram os sábios que raciocinavam sobre as coisas da natureza, tirando delas ensinamentos para a vida. Foram acrescentados aos livros sagrados nos últimos séculos a.C., sendo os mais recentes livros do AT.

4. A nova tradição da era cristã
O NT não foi escrito com a finalidade de ser acrescentado à Bíblia. No tempo de Cristo e dos Apóstolos, o livro sagrado era apenas o AT. O próprio Jesus Cristo se baseava nele em suas pregações. E Ele mandou apenas pregar, e não escrever. Foi quando uma nova tradição oral foi se formando. E após a morte de Cristo, os apóstolos saíram pregando.
Mas veio a necessidade de congregar outras pessoas para o anúncio, em vista do grande número de comunidades existentes. Então, começaram a escrever. Mais tarde, com a aceitação também de cidadãos estrangeiros nas comunidades, a mensagem precisou ser traduzida e adaptada. Além disso, o próprio povo necessitava de uma escrita (doutrina escrita) para se conservar una, após a morte dos Apóstolos. Esta redação, no início, era apenas de alguns escritos esparsos, que só depois de algum tempo foram juntos em livros. Exemplo disso está em Mc 2, uma série de disputas de JC com os Judeus, onde se vê claramente que foi recolhida de escritos separados. Também em João se lê: "Muitas outras coisas Jesus fez que não foram escritas..." (Jo 21,24) Isto significa que só foram escritas aquelas mensagens que teriam utilidade, conforme as necessidades momentâneas.
O evangelho de Marcos, o primeiro a ser escrito, data dos anos 60 ou 70 d.C.; os de Lucas e Mateus, são de 70 ou 80, o que significa que somente após uns 40 anos da morte de JC sua palavra começou a ser escrita. 0 Evangelho de João só foi escrito em torno do ano 100 d.C. Antigamente, se acreditava ser Mateus o autor do primeiro Evangelho. Mas a critica histórica mostra que o de Marcos foi anterior. Aliás, a respeito deste evangelho de Mateus, não se sabe ao certo quem é o seu autor. Foi atribuído a Mateus, apenas por uma tradição e também por uma praxe da época de se atribuir um escrito a alguém mais conhecido e famoso, para que a obra tivesse mais autoridade.

5. Entendendo algumas dificuldades concretas
Durante o tempo anterior á escrita dos Evangelhos, havia apenas a pregação dos Apóstolos, recordando os fatos da vida de Cristo, todavia eram fatos esparsos, sem nenhuma preocupação com seqüência ou unidade. Por isso os Evangelhos, que foram esta pregação escrita, se contradizem em algumas datas, o que mostra a pouca importância dada à cronologia. Os fatos eram recordados e aplicados, conforme as necessidades. Assim, até entre os Evangelhos sinóticos, que seguiram a mesma fonte, há diversificações. Por exemplo, no Sermão da Montanha, em Lucas fala "bem aventurados os pobres"; e em Mateus, "bem aventurados os pobres de espírito". A diferença consiste no seguinte: Lucas deu um sentido social, mais importante para as comunidades gregas, para as quais escrevia. Mas o de Mateus destinava-se às comunidades judias e queria combater uma doutrina dos judeus que tinham uma idéia falsa de pobreza. Para eles, o próprio fato de a pessoa ser pobre, já lhe garantia a salvação, enquanto outra pessoa, pelo simples fato de ser rica, já estava condenada. Por causa disso ele escreveu "pobres de espírito".
Outro ponto de discordância é o caso da cura de um cego. Mateus diz "um cego, na saída de Jericó"; e Lucas "dois cegos, na entrada de Jericó". 0 fato da 'entrada' e 'saída' pode ser explicado pela existência de duas cidades chamadas Jericó. 0 fato de serem um ou mais cegos explica-se pelo seguinte: era comum naquele tempo os cegos formarem grupos em torno de um cego-lider; e o nome deste geralmente era o do grupo. No entanto, estes detalhes pouco importam ao evangelho. 0 seu interesse é a apresentação da mensagem (evangélion = boa nova).

6. A fonte comum
Os Evangelistas sinóticos se basearam no Evangelho de Marcos e noutra fonte, convencionada por fonte "Q", simbolizando os inúmeros escritos esparsos de que já tratamos. Espalharam cópias destes por outras partes do mundo. Lucas, Mateus, cada um em lugares diferentes, se inspiraram nos escritos disponíveis e inclusive no evangelho de Marcos, que na época já havia sido escrito. O fato do primeiro Evangelho ser atribuído anteriormente a Mateus se deve a uma afirmação de Eusébio de que Mateus escrevera a "logia" do Senhor em aramaico. Mas a crítica histórica provou que o Evangelho que conhecemos não traz apenas a "logia" do Senhor e não foi escrito em aramaico, e sim em grego. Portanto a noticia de Eusébio se refere a outro escrito, e não a este evangelho. Nada impede, porém, que tenha sido escrito por discípulos de Mateus e atribuído ao Mestre. Aliás, a respeito de "Evangelho", o primeiro a usar esta palavra para indicar as memórias dos Apóstolos foi S. Justino, em 130 d.C.

7. As Cartas
As cartas de Paulo foram enviadas para serem lidas em público. Em I Tes 5, 27 há uma alusão a isto. Havia também o intercâmbio das cartas, como se lê em Col 4,16: "mostrem esta carta para Laodicéia e tragam a de lá para vocês". Aos poucos as cartas foram colecionadas, e no fim do I século já se tem notícia delas, quando em II Ped 3,15 se lê: "...nosso irmão Paulo vos escreveu conforme o dom que lhe foi dado... " As cartas de Paulo foram os primeiros escritos do NT. Não se sabe quando os Evangelhos e elas foram acoplados, mas já no fim do I século estavam reunidos num só livro.
As Epistolas Católicas (universais) são chamadas assim por se destinarem à Igreja em geral, e não a tal ou qual comunidade, como fizera Paulo. Elas também se originaram da necessidade pastoral, e já no começo do II século estavam incorporadas aos outros escritos do NT. Os Atos dos Apóstolos podem ser considerados a continuação do terceiro Evangelho, pois também foi escrito por Lucas. E o Apocalipse de S.João, livro profético, foi acrescentado por último.
Nos escritos do NT, freqüentemente se encontram citações do AT. É que muitas vezes os Apóstolos queriam tirar dúvidas sobre certas passagens, que tinham falsa interpretação. Nas assembléias, eram lidos escritos do AT e do NT, para explicá-los. Exemplo disto temos em I Tes 4,15; I Cor 7,10.25.40; At 15, 28; I Tim 5,18; Lc 10,7.

8. O Cânon Sagrado
No século III, a Igreja se reuniu em Concilio em Hipona, e uma das tarefas era organizar o "cânon", ou a lista de livros sagrados considerados autênticos. Neste Concilio, os livros foram estudados e se investigou quais os que sempre foram lidos nos cultos e sempre foram considerados legítimos. E se estabeleceu a ordem ainda hoje conservada. O motivo pelo qual alguns livros foram postos em dúvida era a grande quantidade de livros apócrifos, que fazia com que se duvidasse dos verdadeiros. Havia muitos livros que os judeus não aceitavam. Então os Ss. Padres ponderaram os prós e contras e definiram a lista que foi aprovada.


HERMENÊUTICA - INTERPRETAÇÃO DA BIBLIA
1. Conceito
A palavra 'hermenêutica' vem do verbo 'hermenêuein' (interpretar). E esta interpretação foi entendida diversamente através dos tempos. Por isso, temos três tipos de exegese: l. rabínica; 2. protestante; 3. católica.

2. Exegese Rabínica
Os judeus interpretavam a escritura ao pé da letra, por causa da noção de inspiração que tinham. Se uma palavra não tinha sentido perceptível imediatamente, eles usavam artifícios intelectuais, para lhes dar um sentido, porque todas as palavras da Bíblia tinham que ter uma explicação. O exemplo do paralítico é antológico: ele passara 38 anos doente. Por que 38? Ora, 40 é um número perfeito, usado várias vezes na vida de Cristo (antes da ressurreição, no jejum) ou também no AT (deserto, Sinai). Dois é outro número perfeito, porque os mandamentos (vontade) de Deus se resumem em "2": amar Deus e ao próximo. Portanto, tirando um número perfeito de outro, isto é, tirando 2 de 40 deve dar um número imperfeito (38) que é número de doença...
Alegoria pura: neste sentido se entende a condenação de certas teorias que apareceram e eram contrárias à Bíblia (caso de Galileu). Assim era a exegese antiga. No século XVIII, o racionalismo fez o extremo oposto desta doutrina: negaram tudo que tinha alguma aspecto de sobrenatural e mistério, e procuravam explicações naturais para os fatos incompreensíveis, assim por exemplo, dizendo que Cristo hipnotizava os ouvintes e os iludia dizendo que era milagre. JC não ressuscitou, mas ele apenas havia desmaiado na cruz, e quando tornou a si saiu do sepulcro... Talvez não o fizessem por maldade. Era por principio filosófico.
A Igreja primitiva herdou muito do rabinismo, no início, mas depois se libertou. Começaram por ver na Bíblia vários sentidos: literal, pleno e acomodatício. Literal: sentido inerente ás palavras, expressão pura e simples da idéia do autor; Pleno: fundado no literal, mas que tem um aprofundamento talvez nem previsto pelo autor. Deus pode ter colocado em certas palavras um significado mais profundo que o autor não percebeu, mas que depois se descobre. Deus, como autor, fez assim. A palavra do profeta se refere a uma situação histórica; a palavra de Deus se refere ao futuro. Acomodatício: é a acomodação a um sentido à parte que combina com as palavras. É a Bíblia aplicada à realidade apenas pela coincidência dos textos. Por exemplo, em Mt se lê "do Egito chamei meu filho"... para que se cumprisse a Escritura. Mas o sentido, ou seja, a aplicação original deste trecho não se referia à volta da Sagrada Família, mas sim à saída do Povo do Egito. Esta acomodação foi explorada demasiadamente pelos pregadores, que até abusaram disto. Outro exemplo de acomodação é a aplicação a Maria dos textos do livro da Sabedoria. Estes são mais literatura que Escritura. Todavia, crendo-se na inspiração, aceita-se que as palavras do autor podem ter uma significação mais profunda que a original.

3. Exegese Protestante
Surgiu do protesto de alguns cristãos contra a autoridade da Igreja como intérprete fiel da Bíblia. Lutero instituiu o princípio da "scritura sola" (traduzindo, a escritura sozinha), sem tradição, sem autoridade, sem outra prova que não a própria Bíblia. A partir daquele instante, os Protestantes se dedicaram a um estudo mais acentuado e profundo da Bíblia, antecipando-se mesmo aos católicos. Mas o princípio posto por Lutero contribuiu para um desastre hermenêutico, pois ele mesmo disse que cada um interpretasse a Bíblia como entendesse, isto é, como o Espirito Santo o iluminasse.
Isto fez surgir várias correntes de interpretação, que podem se resumir em duas: a conservadora e a racionalista. A conservadora parte daquele principio da inspiração = ditado, em que se consideram até os pontos massoréticos como inspirados. Não se deve aplicar qualquer método cientifico para entender o que está escrito. É só ler e, do modo que Deus quiser, se compreende. A racionalista foi influenciada pelo iluminismo e começou a negar os milagres. Daí passou à negação de certos fatos, como os referentes a Abraão. Afirmam que as narrações descritas, como provam o vocabulário, os costumes, são coisas de uma época posterior, atribuído àquela por ignorância. Esta, teoria teve muito sucesso e começaram a surgir várias 'vidas' de Jesus em que ele era apresentado como um pregador popular, frustrado, fracassado...
Outros ainda interpretavam o Cristianismo dentro da lógica hegeliana: São Paulo, entusiasmado, teria feito uma doutrina, que atribuiu a JC (tese); depois São João, com seu Evangelho constituiu a antítese; finalmente São Marcos fez a síntese. Hoje, porém, se sabe que Marcos é o mais antigo. Estes intérpretes se contradizem entre si, o que provocou uma certa desconfiança. Por fim, a própria arqueologia, em auxílio do Cristianismo, veio provar com a descoberta de vários documentos históricos que a Bíblia tinha razão: aqueles costumes, aquele vocabulário eram realmente daquela época, inclusive o uso dos nomes Abraão, Isaac também eram comuns no tempo. Isto e outras coisas serviram para desmentir tais idéias iluministas.

4. Exegese Católica
Inicialmente, apegou-se muito aos métodos tradicionais: usava mais a tradição e menos a Bíblia. Mesmo no século XIX, a tendência era ainda conservar a apologética, a defesa da fé. Foi o Padre Lagrange quem iniciou o movimento de restauração da exegese católica. Começou a comentar o AT com base na critica histórica. Mas foi alvo tantos protestos que não teve coragem de continuar. Em seguida, comentou o NT, e ainda hoje é autoridade no assunto. A Igreja Católica custou muito a perceber o seu atraso no estudo bíblico, e até bem pouco tempo ainda afirmava ser Moisés o autor do Pentateuco, quando os protestantes há mais de um século já descobriram que não.
O primeiro passo da nova exegese da Igreja Católica foi dado por Pio XII, em 1943, com a encíclica DIVINO AFFLANTE SPIRITU, na qual aprovou a teoria dos vários gêneros literários da Bíblia. Depois, em 1964, Paulo VI aprovou um estudo de uma comissão bíblica a respeito da história das formas (formgeschichte). E hoje em dia, tanto os exegetas católicos como os protestantes são a favor desta, e qualquer livro sério sobre o assunto traz este aspecto. Protestantes citam católicos e vice versa, sem nenhuma restrição.


HISTÓRIA DAS FORMAS - GÊNEROS LITERÁRIOS
1. HISTÓRIA DAS FORMAS ("FORMGESCHICHTE")
É o padrão da exegese moderna. Em geral todo método exegético moderno aborda os seguintes tópicos:

a) critica textual - se os manuscritos originais desapareceram ou nunca foram encontrados, como se sabe se o texto atual corresponde ao original? Até que ponto é fiel? Em 1008, foi encontrado um manuscrito básico para a edição da melhor bíblia hebraica que se tem hoje. Está no museu de Leningrado. Mas, questiona-se: por quanto tempo o livro foi sendo recopiado, e foi adquirindo erros de escrita? Muitas vezes, vários manuscritos (cópias) de um mesmo livro trazem palavras diferentes. E por que tanta fé neste manuscrito?
O manuscrito mais antigo (até pouco tempo) do AT era composto de fragmentos de um papiro do I ou II século a.C. Os beduínos acharam às margens do Mar Morto vários manuscritos datando do II século a.C. e há alguns, como o livro de Isaías, cujo texto é quase completamente igual ao que temos. A Bíblia original (copiada) data do século II d.C. Os rabinos tinham muito cuidado em transmitir a doutrina, e procuravam unificar os textos. Os textos velhos eram colocados em lugares onde ninguém podia mais usá-los, chamados gezidas. Numa destas gezidas foi encontrado um documento do ano 800, aproximadamente, do qual aquele de 1008 é cópia. A diferença entre ambos é pouquíssima. Ora, se a nossa Bíblia é a tradução daquele manuscrito, considerado autentico, aquela Bíblia é a melhor.

b) 'sitz in leben'- Há livros que antes de serem escritos, foram passados oralmente por várias gerações. Cada manuscrito que serviu para a composição de um texto tem uma história diferente. Por isso eles dividem as perícopas e estudam as tradições e fontes delas. E como o manuscrito chegou a esta fonte? Deste estudo se deduz a 'sitz in leben' (situação na vida) deste manuscrito no gênero literário. A 'sitz in leben' que este gênero literário tem na comunidade; a 'sitz in leben' desta comunidade na história.

c) história da redação - Por que há certas palavras a mais ou a menos nos Evangelhos? Isto varia com a 'sitz in leben' do manuscrito. Quem determina isto é a critica literária. Tudo isto dentro do estudo da história das formas.

2. PRINCIPAIS GENEROS LITERÁRIOS DA BÍBLIA
Dividem-se assim os diversos gêneros literários encontrados na Bíblia:

a) Narrativo: histórico e didático
b) Legislativo
c) Sapiencial
d) Profético
e) Cânticos

a) narrativo-didático: mito, saga, legenda, conto, fábula, alegoria, parábola
l. mito - conto que se passa com deuses, ou cujos personagens são os deuses. Têm tonalidade solene e são originários de círculos politeístas. A mitologia babilônica, por exemplo, muito influenciou no povo de Israel, que sempre foi monoteista. Isto se vê nos salmos 103, 6-9; 17, 8-16; 88, ll e nos proféticos: Job 26, l2. Nos livros históricos, a influência é mais velada. Mas a árvore da vida do Gênesis já existe num poema de Gilgames (de origem Babilônica): um herói perguntou a um seu antepassado que era deus, onde ficava a árvore da vida. Ele a encontrou no fundo do mar, e levou um ramo para plantar. Tendo sede, foi beber num poço e uma serpente levou o seu ramo. A história do dilúvio tem uma similar na cultura babilônica. É o caso de uma deusa que era amada ao mesmo tempo por um deus e por um homem. Então para matar o homem, o deus mandou o dilúvio.
O importante a se notar nisso tudo é que, ao ser transcrita para o livro sagrado, o autor purifica a lenda, tirando as características politeístas e servindo-se da cultura popular para levar uma mensagem. A árvore da vida, na bíblia, significa que o homem foi criado para não morrer. Na sabedoria babilônica, explicam que o mundo nasceu de uma briga dos deuses. O deus vencido foi partido ao meio. De uma metade fez o deus vencedor o céu; de outra fez a terra. Depois pediu a um deus artista que fizesse o homem com o sangue apodrecido do deus vencido. Por isso, o homem e o mundo são maus do principio. O autor sagrado aproveita-se destes elementos, mas purificando-os e adaptando-os. A tradicional briga dos anjos com Lucifer existe num mito fenício sob a forma de uma briga de deuses. A linguagem mítica da bíblia, o antropomorfismo de Deus... tudo isto tem origem desta inspiração na literatura exterior a Israel.

2. saga - contos que se ligam a lugares, pessoas, costumes, modos de vida dos quais se quer explicar a origem, o valor, o caráter sagrado de qualquer fenômeno que chama a atenção. A saga se chama etiológica quando procura a causa de um fenômeno. Por exemplo, para explicar a existencia de uma vegetação pobre e espinhosa na região sul ocidental do Mar Morto, surgiu a lenda de Sodoma e Gomorra, a chuva de enxofre... A origem de várias estátuas de pedra, formadas pela erosão é explicada pela história da mulher de Ló, que foi transformada em estátua. A narrativa de Caim e Abel é outra, para explicar a origem de uma tribo cujos integrantes tinham um sinal na testa. Explicavam que Deus colocara um sinal em Caim para que ninguém o matasse, e daí este sinal ficou para a descendência. O próprio nome de Caim é inventado, porque a tribo tinha o nome de cainitas e eles deduziram que seu fundador devia chamar-se Caim.
A saga se chama etimológica quando é para explicar um nome. Existe na Palestina uma Ramat Leqi (montanha da queixada). Para explicar a origem deste nome eles inventaram a estória de Sansão, um homem muito forte, que lutara contra muitos inimigos usando uma queixada, e os vencera. Depois ele jogou a queixada naquele monte, que ficou c conhecido como monte da queixada. 0 caso das filhas de Ló (Gen, 19) é uma história difamatória contra os amonitas e moabitas, tradicionais inimigos de Israel. (Amon e Moab significam 'do pai'). Outras sagas da Bíblia: a de Noé embriagado; a briga de Labão com Jacó (Gen 31). A saga se chama heróica quando tem por finalidade engrandecer a vida dos heróis do passado. O valor da saga está na riqueza popular (folclórica) que ela traz. Nem sempre há lição em cada uma. Mas a fartura de detalhes que ela traz mostra a mentalidade do povo. Seu valor é maior para a critica literária.

3. legenda - distingue-se da saga porque se refere a pessoas ou objetos sagrados e querem demonstrar a santidade destes por meio de um fato maravilhoso. Legendas na Bíblia há em Num 16,1 - 17,15: histórias a respeito de Moisés; Dan l, 2, 3, 4: sonhos de Daniel; Os milagres de Elias contra os sacerdotes de Baal; Gen 28,10: Jacó sonha com os anjos (pedra de Betel). É comum nas legendas referir-se à lei ou objeto de culto. A imolação de Isaac, que não deu certo, é para reprimir um costume dos cananeus de imolar crianças, costume proibido pela lei de Moisés. A serpente de bronze (Num 21) se refere a uma serpente de bronze mandada fazer pelo rei Manassés, que foi destruída por Javé. A circuncisão (Gen 17) é explicada assim: Deus apareceu a Abraão para fazer aliança com ele e o pacto era a circuncisão de todos os meninos no oitavo dia. Jos 5, 9 e Ex 12 e 13 falam da origem da Páscoa.

4. parábolas, fábulas, alegorias - parábola é uma história comparativa, de sentido global (ex: II Sam 12, 1-4); fábula é a narrativa que faz os seres inanimados ou os animais falarem (ex: Juízes, 9,7); alegoria é uma história comparativa em que cada elemento tem um significado particular (ex: Is 5, 1-7). Há ainda o apólogo, quando se trata da animação de objetos.
b) narrativo-histórico
Difere do didático porque pretende contar um fato acontecido realmente. Há três tipos:
1. popular, onde ninguém sabe o fim da lenda e o começo da história. É uma história primitiva, baseada em histórias que corriam na boca do povo, um misto de elementos verídicos e legendários acrescentados. Os livros Josué e Juízes (550 a.C.) estão nesta categoria.

2. epopéia (nacional-religiosa) são histórias retiradas da catequese do povo. Se bem que tenham elementos acrescentados, todavia a mensagem pode ser considerada autêntica. O exemplo mais típico deste gênero é a narração epopéica da passagem do mar vermelho (Ex. 14 ). A fuga de Israel do Egito está ligada a um fato acontecido no tempo de Ramsés II. Ele foi um faraó que empreendeu grandes conquistas, principalmente à procura de escravos para trabalhar. Entre os povos submetidos havia um grupo de judeus. Mais tarde, fraquejou a vigilância, e muitos fugiram, inclusive muitos judeus. Então eles empreenderam a fuga pelo deserto e se aproveitaram de uma região onde havia um braço de mar que secava durante a maré baixa para sair do território egípcio.
Esta narrativa na Bíblia é contada com todos aqueles retoques conhecidos. Mas se analisarmos bem, veremos que na própria Bíblia, há duas citações do mesmo fato, e cada uma conta diferente. São as duas tradições: a javista, mais antiga e mais verdadeira, afirma que o vento soprou durante toda a noite e fez o mar recuar; a sacerdotal, mais recente, modificou a narração para a divisão das águas em duas muralhas por onde todos passaram em seco. Há uma certa contradição nestas duas. Mas o que se deve concluir daí é que os soldados os perseguiram na fuga e eles passaram na maré baixa. Quando os soldados chegaram, a maré já subira e não dava passagem. Enquanto isso, eles se adiantaram ainda mais. Ao transcrever isto na Bíblia, o autor sagrado quer mostrar o fato da presença de Deus em ajuda de seu povo, através dos elementos da natureza.

3. historiográfico - é o trabalho dos escribas encarregados de escrever as crônicas dos anais dos reis. A partir destas crônicas vários livros foram escritos. 0 I Reis, cap. 11, vers.41 cita os anais de Salomão; em 14, 19 afirma que o restante está nos livros das crônicas dos Reis de Israel. São documentos de maior credibilidade, porque são mais históricos. Somente a partir do livro dos Reis, é que são usados documentos escritos na época. Antes era apenas história popular.
c) Legislativo
É representado na Bíblia principalmente no Pentateuco. Tem muito em comum com os outros povos vizinhos e herdou muito deles. Há passagens na Bíblia que são repetições do código de Hamurábi. Os povos orientais são muito ricos neste tipo de literatura. Quanto aos tipos de leis, há três: 1. leis causídicas: pormenorizadas conforme as situações; 2. leis apodíticas: universais; 3. leis rituais.
d) Sapiencial
Originou-se também dos povos vizinhos, principalmente a partir do Exilio. São de origem profana e não religiosa, pois as suas fontes também não eram religiosas. 0 povo oriental é pensador por natureza e a sabedoria é uma virtude muito difundida e apreciada. A sabedoria bíblica não difere muito da sabedoria oriental em geral.
e) Profético
Também tem origem fora de Israel. Os povos da época tinham seus profetas. Eles moravam nos palácios dos reis e eram os que dialogavam com os deuses. É preciso notar que naquela época profeta não era sinônimo de adivinho, como às vezes se identifica. Eles·manifestavam ao povo a vontade de Deus com sermões, com sinais, exortações e oráculos.
f) Salmos
Também tem influência externa (fora de Israel). Não são todos de Davi. Apareceram conforme as necessidades. Foram compostos sem sequência ou cronologia. São cantos de louvor, de súplica.
3. PRINCIPAIS ETAPAS DA HISTÓRIA DE ISRAEL
0 primeiro marco importante na história politica·de Israel foi o exílio. Sua finalidade politica era para evitar a rebelião. Em geral, quando era conquistado um povo muito numeroso, os conquistadores achavam perigoso deixá-los em suas terras de origem, porque isso lhes facilitava um trabalho oculto de rebelião para expulsar os invasores. Então, longe de suas terras e sem uma liderança, eles não podiam se movimentar. Os judeus foram assim exilados para a Babilônia. 0 exílio teve início no ano 587 e foi concluído com o edito de Ciro que, em 538 conquistou a Babilónia e libertou os judeus.
Dizem os historiadores que a rivalidade entre judeus e samaritanos começou na volta do exílio. O povo no exilio ficou muito tempo em contado com vários povos estrangeiros e adquiriu com isto um sincretismo religioso que levaram para a Pátria. Ao retornarem à patria, logo eles empreenderam a reconstrução de Jerusalém (casas, templo...), mas não se livraram completamente das influências politeístas, causando assim várias brigas internas.
O Sinédrio era a cúpula religiosa da nação, composta de 70 membros sob a presidencia do Sumo Sacerdote, que tinha autoridade suprema. Os fariseus e saduceus eram partidos politicos, mas com inspiração religiosa. Os primeiros eram da oposição e os outros, da situação. No ano 63 a.C, a Palestina foi conquistada pelos Romanos, iniciando outra era de dominação estrangeira, que perdurou até o tempo de Cristo.

CRONOLOGIA BÍBLICA
* séc.XIX (1850 a.C) - migração de Abraão.
* séc.XIII - libertação do Egito; êxodo (1225 a.C.); aliança no Sinai.
* séc X - (1013 a 973) - Tempo do Rei Davi. Foi escrita a tradição javista (sul); (970 a 930) - Tempo do Rei Salomão. Foi escrita a tradição eloista. (norte); (930) - divisão dos reinos.
* séc VIII (722) - queda de Samaria para o exército de Sargão II, Profetas escritores.
* séc VII (586 ) - queda de Jerusalem para Nabucodonosor, rei da Babilônia; (538) - edito de Ciro, volta do exílio.
* séc III (300) - tradução dos 70.


Segunda Parte – O Pentateuco


O ANTIGO TESTAMENTO

1. GENERALIDADES



Este é um estudo muito importante hoje em dia, principalmente por causa da aparente contradição entre a Bíblia e a ciência, sobretudo nos primeiros capítulos. Durante muito tempo, procurou-se ver na Bíblia uma explicação científica para as origens do mundo e isto foi motivo de históricas controvérsias.
Nos dias de hoje, estas questões ainda despertam grande interesse no meio estudantil, mormente entre universitários, de modo especial, as narrações dos primeiros capítulos do Gênesis, quando eles estudam principalmente o evolucionismo.
Outro problema sério e muito discutido é sobre o pecado original, questão difícil e polêmica, mas já a caminho de solução adequada para as pessoas do nosso tempo.
Nas páginas seguintes, apresentarei algumas informações preciosas descobertas pelos críticos literátios protestantes e católicos, que nos ajudam a compreender melhor a mensagem contida nos textos aparentemente contraditórios.


a) O PENTATEUCO
Os cinco primeiros livros da Bíblia formam um só bloco chamado Pentateuco (penta = cinco; teucos = volumes). São eles: Gênesis (criação); Êxodo (saída do povo); Levítico (leis rituais); Números (por causa do recenseamento do povo); Deuteronômio (deuteros = segunda; nomos = lei) repetição de todas as leis contidas no Pentateuco.
Estes livros eram a base da tradição judaica, o fundamento da religião. O conjunto deles era designado pelo nome de "torah", a lei, o livro da Moisés. Mesmo alguns grupos que se afastaram dos judeus conservaram o Pentateuco, como os samaritanos.
Quanto à interpretação, no princípio todos acreditavam ter sido escrito integralmente por Moisés. Havia uma tradição segundo a qual ele foi escrito por Deus e entregue a Moisés pelos anjos. Mas só alguns trechos se sabe foram escritos pelo próprio Moisés (mandamentos, batalha dos amalecitas... ). Até a Idade Média, entretanto, prevaleceu a idéia da autoria mosaica, embora alguns estudiosos, por esse tempo, já desconfiassem disso.
Foi no século XVIII que começou o trabalho da crítica literária, estimulada pelos achados arqueológicos e descobertas científicas, o que proporcionou um estudo mais científico do texto. Descobriu-se que há uma diversidade de estilos, de vocabulários (Javé=Eloi=Deus; Sinai=Horeb), de tendências teológicas (mais atrasadas ou mais evoluídas)... Estes indícios levaram alguns autores a discutir sobre a origem do Pentateuco.
A princípio, pensou-se em uma coleção de documentos independentes. Outros entendiam como uma seqüência lógica: houve um documento base ao qual outros foram acrescentados. O certo é que encontraram finalmente e distinguiram claramente quatro fontes principais. Isto foi um grande choque para a Igreja Católica, porque veio romper uma tradição de muitos anos. Além do mais, estas novidades foram descobertas por críticos racionalistas, que não deixaram de usá-las para seus propósitos contrários à religião.
Os exegetas católicos ainda não chegavam a este ponto do estudo crítico, mas eles reconheceram a validade de certos argumentos e passaram a estudar. O iniciador foi o Padre Lagrange, mas não teve muita aceitação na época, por isso abandonou os seus estudos. Os comentários de outros autores não tratavam de questões criticas (não eram críticos), mas apenas explicavam. Assim foi até 1943, quando o Papa Pio XII, na encíclica Divino Afflante Spiritu, deu uma abertura maior aos teólogos. Só aí se começaram a estudar abertamente e com profundidade os gêneros literários, coisa que os protestantes há tempos já faziam. Deste modo, a exegese católica começou atrasada. E a “formgeschichte” (história das formas), que os protestantes já utilizavam, só em 1967 foi aceita por Paulo VI; antes era heresia.


b) AS TRADIÇÕES PRIMITIVAS
As quatro fontes principais do Pentateuco são as quatro tradições hebraicas:
a javista, do sul; assim denominada por chamar Deus de Javé; a eloista, do norte; assim denominada por chamar Deus de Eloi. Ambas são do séc. X a.C. a sacerdotal, foi descoberta depois esta tradição mais recente. E finalmente, a deuteronômica, uma repetição das anteriores.
Por volta do ano 398 a.C., um autor ou vários autores juntando estes documentos escreveram o Pentateuco.
A tradição JAVISTA é a catequese antiga dos hebreus na parte do sul, catequese oral que se ministrava nas reuniões dos santuários. A princípio, os estudiosos acreditavam se tratassem de fontes escritas, mas depois se descobriu que somente por volta do ano 950, tempo de Salomão, é que foi escrita a tradição do sul, em Jerusalém; uns 100 ou 50 anos depois desta foi escrita a tradição do norte, em Samaria. E no tempo da queda de Samaria (721/722 a.C.), os sacerdotes fugiram para Jerusalém e lá encontrando outra tradição, fundiram ambas. Assim a tradição ELOISTA foi incorporada à javista.
No ano 622 a.C., no reinado de Josias, uns pedreiros que faziam reformas no templo encontraram um livro da lei (cf. II Reis, 22,8 ss.). Os críticos hodiernos são quase unânimes em afirmar que este livro corresponde ao Deuteronômio na Bíblia atual. Foi redigido no séc. VII, e nele há vários tipos de leis:
a) leis muito antigas, constantes em outras legislações não hebraicas, mesmo anteriores a Moisés; b) leis do tempo de Moisés; c) leis posteriores, atualizadas após a estabilidade em Canaã.
O DEUTERONOMIO hoje é considerado não só como um livro, mas como uma escola, da qual este livro faz parte.
Em 587 a. C., durante o exílio da Babilônia, o povo sentiu a necessidade de outra atualização das leis. Isto deu origem à tradição SACERDOTAL, iniciada no tempo do exílio e terminada logo após (séc. IV). Depois disto, um autor (ou vários autores) tomou estas tradições escritas e com base nelas redigiu o nosso Pentateuco, pelo ano 398 a. C.

c) CRONOLOGIA
Convém notar que os textos mais antigos da Bíblia nem sempre são os que vêm apresentados em primeiro lugar nas edições. Por exemplo, de onde os hebreus tiveram a idéia de criação do mundo, que contém uma teologia bem diferente das cosmogonias da época?
Tudo começou com a catequese do povo. A primeira catequese de Israel data do ano 1100 a.C., quando os hebreus entraram na terra (cap. 24 de Josué). É a crença em Deus Pai que os tirou do Egito e trouxe para a terra onde corre leite e mel. Daí surgiu a pergunta: como foi que chegaram ao Egito, de onde fugiram? A partir daí vieram regredindo nas perguntas para os Patriarcas (Jacó, Isaac, Abraão) e para a narrativa da criação. Por isso, a narrativa da criação pertence ao último grupo cronológico de perguntas, e foi das últimas páginas compiladas.
Os 11 primeiros capítulos do Gênesis, até pouco tempo se acreditava que tinham sido diretamente revelados primitivamente por Deus, mas hoje hão se aceita mais isto. Crê-se que a superioridade de conceito teológico em relação aos outros povos se deu em Israel a partir de uma reflexão, na qual foram seguramente guiados por Deus. Os escribas de Israel, que eram encarregados de instruir o povo, refletiram sobre as perguntas feitas e chegaram a estas conclusões. O seu modo de falar reflete a visão do mundo que eles viviam, ou seja, a terra como um prato de areia sobre colunas em cima das águas (inferiores), coberta por uma abóbada onde estavam pendurados o sol, a lua, as estrelas, e ainda por cima as águas (superiores). O que o autor queria era demonstrar é que tudo aquilo havia sido organizado por Deus, ou seja, criado por Deus e colocado lá em cima por ele.
Pode-se dizer que isto é história? Sim, em certo sentido, não no sentido científico atual de história, mas como história da salvação, que não dá tanto valor aos fatos em si, mas à interpretação, à mensagem do fato. Não se sabe quando começou realmente a história humana, porque no começo o homem não escrevia, o que só aconteceu a 3.000 anos A.C. Mesmo assim, para fazer história, o homem daquele tempo usava os meios à disposição: mitos, sagas, lendas...
Então, toda a história de Israel tem origem de seu Credo. Desta origem há duas versões: a primeira, no cap.24 do livro de Josué, diz que era recitado por ocasião da colheita pelo sacerdote (na ocasião da apresentação das colheitas no templo); a segunda está no Deuteronômio, 26, 5. O certo é que a Bíblia é a interpretação da história, que servia para a catequese. Foi a mensagem encontrada nos acontecimentos que eles escreveram. Neste sentido, Bíblia se identifica com história e com “kerigma” (anúncio, apelo).
No inicio, principalmente, foi muito difícil de ser formado devido à falta de documentos e testemunhas, por isso eles fizeram uso de vários mitos e sagas que conheciam, procurando ligá-los o mais possível. E para dar maior credibilidade histórica, aqui ou ali eles intercalavam uma genealogia.


O G Ê N E S I S - I
O Gênesis é o primeiro livro na sequência bíblica e pode ser dividido em duas grandes partes:
a) - História das origens: da criação até o pecado original (Cap. 1 a 3); de Adão até Abraão (Cap. 4 a 11).
b) - História dos patriarcas Abraão (Cap. 12,1 a 25,18); Isaac e Jacó (Cap. 25,19 a 37, 1.); José (Cap. 37,2 a 50,26)

HISTÓRIA DAS ORIGENS
Há duas histórias da Criação no Gênesis. A análise história descobriu que a primeira na ordem que se encontra na Bíblia é de origem da tradição sacerdotal, portanto, bastante recente e mais evoluída; a segunda que está logo em seguida é, cronologicamente, anterior. É de origem da tradição javista e tem composição mais rudimentar.
a-1 – Narrativas da Criação
A narração começa: "no princípio". Isto é por causa da mentalidade judaica, porque eles não podiam dar um 'tempo' para Deus, então eles usam uma expressão temporal genérica. "Deus criou", o verbo 'criar' em hebraico tem características próprias e é empregado apenas referindo-se a Deus, nunca para o homem. A palavra 'criar' sempre anuncia uma coisa nova, uma maravilha e indica também falta de esforço, ou seja, a realização de algo pelo trabalho mas sem consumo de energia corporal. As palavras "informe, vazio, trevas, abismo" são de origem mitológica, para indicar simplesmente o caos. E o "espirito de Deus" que pairava sobre tudo, dominava tudo, significa a força de Deus. Um conceito importante é o da palavra "nada", que não era um conceito negativo, mas representava algo que eles não entendiam, e precisavam personificar. Por isso o autor faz aquela descrição detalhada de como era o caos antes que Deus operasse a criação. Na primeira narração, há uma insistente tendência apologética, insistindo sobre o fato de Deus ter criado os astros e assim eles também eram criaturas de Deus. Isto era porque alguns hebreus, influenciados por outras nações vizinhas, queriam adotar também a adoração dos astros. Ao dizer que os astros eram criaturas, o autor queria mostrar que eles são inferiores a Deus e não mereciam adoração.
A partir do vers. 26, o autor muda de linguagem porque vai falar da criação do homem. E faz isto para mostrar que o homem é superior aos outros seres já criados. Diz: "Façamos o homem à nossa imagem e semelhança". Ao usar o conceito de imagem, ou seja, reprodução de Deus, substituição de Deus, logo insere o conceito de semelhança, ou seja, não é igual. Já quando diz: "Deus criou homem e mulher", isto é para mostrar a igualdade de dignidade do homem e da mulher. A expressão: "Ossos dos meus ossos, carne da minha carne" quer dizer que ambos são da mesma natureza. Isto era muito avançado, porque naquela época a mulher era colocada socialmente em plano inferior ao homem; era uma 'posse' a mais, uma coisa possuída pelo homem. Por exemplo, o mandamento proibia 'tomar' o boi, o jumento, a mulher, a casa... do próximo. "Crescei e multiplicai-vos", ou seja, continuai o plano de Deus. "Possuí a terra, dominai-a, guardai-a" quer dizer que o homem tem como função desenvolver o mundo, fazê-lo produzir as coisas de que necessita.
Em Gen. l, 28 a 2,15, está a instituição do trabalho por Deus. Em seguida, diz que o homem "deu o nome aos animais", isto tem o objetivo de combater uma teoria babilônica acerca da criação do mundo e também para dar idéia de superioridade do homem, domínio sobre o mundo. "Deus criou o homem do barro e soprou", para dizer que o homem não é só matéria, mas também espirito, que veio deste 'sopro' de Deus. "Come de todas as árvores", não é uma ordem indeclinável, como se o homem devesse ser vegetariano. Era para designar a paz paradisíaca, no sentido de que o homem não precisaria usar violência, matar para sobreviver. "Deus viu que tudo era bom", isto para dizer que Deus fez tudo bom, não foi ele o autor do mal. E, donde veio o mal? A resposta será dada no cap. 3. A narração da criação do mundo em seis dias é para insistir no repouso sabático. A "árvore da vida" que havia no paraíso é resquício de uma mitologia babilônica primitiva e significa que o homem nasceu para não morrer. Porém, com a chegada do homem no mundo, outro elemento entrou também em questão, para ajudar na evolução deste mesmo mundo: a liberdade. O homem não espera que a natureza cumpra tudo com a sua lentidão. Ele vai lá e apressa. Neste aspecto, deve ser entendido o progresso do mundo. A liberdade está por trás de tudo.


O GÊNESIS - II
O evolucionismo científico perante a Bíblia

É conveniente salientar que a narração bíblica das origens do mundo e das coisas não tem nada a ver com a explicação que a ciência moderna atribui a estes fatos. Ela está conforme a concepção cosmológica popular da época em que foi escrita, para ser entendida por aquele povo. Quanto a nós, não deve nos impressionar a narrativa literal dos fatos, mas devemos apenas retirar dali as idéias centrais ou a mensagem contida na narração. Se atualmente, com todos os subsídios de que dispomos de ciência e de técnica, ainda não se chegou a um acordo sobre as origens, que dizer daqueles que viveram uns 5.000 anos antes de nós?... Enquanto os cientistas divergem em suas pesquisas e afirmações, atualmente a Igreja Católica já aceita o evolucionismo, desde que tenha Deus em seu início.
Conforme os estudos geomórficos, os cientistas procuraram compreender a evolução do planeta e para isto é comum dividir os períodos de formação da terra.
1º. período: pré-cambriano - Anterior ao aparecimento da vida. Há uns 4,7 bilhões de anos, havia apenas uma nuvem de hidrogênio que foi aos poucos se aglutinando, transformando e enriquecendo com outros elementos. Daí, à custa de explosões atômicas foi se compondo, e o hidrogênio se transformou em hélio, que por sua vez se queimou e virou carbono. O carbono é encontrado principalmente em matérias orgânicas. Portanto, a partir daí estamos muito próximo do aparecimento da vida.
2. período: cambriano - Foi quando apareceu a vida, há uns 600 milhões de anos. No início, havia vida no mar, apenas (algas, por exemplo).
3. período: ordoviciano - 500 milhões de anos. Continuação e evolução da vida ainda na água.
4. período: silusiano - 440 milhões de anos. Aparecem as primeiras plantas na terra.
5. período: devoniano - 400 milhões de anos. Época do aparecimento dos primeiros anfíbios, animais que conseguiam viver na água e na terra. Evolução da vida na passagem do mar para a terra.
6. período: carbonífero - 350 milhões de anos. Aparecem outras espécies de árvores. Surgem também os animais invertebrados.
7. período: permiano - 270 milhões de anos. Aparecem os répteis e insetos.
8. período: triássico - 220 milhões de anos. Surgem os primeiros mamíferos.
9. período: jurássico - 180 milhões de anos. Aparecem os grandes répteis, os dinossauros e as primeiras aves.
10. período: cretáceo - 135 milhões de anos. Evoluem as espécies que continuam e desaparecem outras.
11. período: esceno - 70 milhões de anos. Proliferação de espécies de mamíferos, maxime macacos.
12. período: oligocêno - 40 milhões de anos. Aparecem os primeiros macacos sem cauda.
13. período: mivano - 25 milhões de anos. Evolução de algumas espécies de macacos (ex: proconsul, cliopteco).
14. período: plioceno - 11 milhões de anos. Evolução em especial dos macacos.
15. período: pleistoceno – l milhão de anos. Aparecimento dos animais domésticos (cão, cavalo, camelo) e do homem.
Os quatro primeiros períodos formam a era paleozóica; do 5º até o 10º período, a era mesozóica; do 11º ao 14º, temos a era terciária; e do 15º em diante, a era quaternária.
O aparecimento do homem

Com relação ao aparecimento do homem no período pleistoceno, há aproximadamente 1 milhão anos, os primeiros eram um tipo ainda intermediário entre o homem e o macaco. Assim, o primeiro destes hominídeos de que se tem notícia é denominado 'homem de Java', de aproximadamente uns 800 mil anos atrás. Ele tinha apenas 700 cm3 de cérebro. É maior do que o cérebro de um macaco, mas menor do que o de um homem. O outro espécime data de 600 mil anos. É o 'pitecantropo', que também é intermediário e tem 750 cm3 de cérebro.
A partir daí, a ciência não tem ainda dados claros de como e quando se deu a 'hominização'. Os estudiosos vacilam entre 400 a 300 mil anos. Deste período não foi encontrado nenhum espécime, de modo que tudo são apenas conclusões. Mas sabe-se que à medida que os anos foram se passando, foi aumentando a capacidade craniana, o polegar foi se distanciando dos outros dedos e a coluna vertebral foi ficando mais ereta. Até quando chegou num ponto onde houve aquele "estalo" da inteligência e da consciência, e o ser intermediário se transformou em homem. O Neanderthal data de 120 mil anos e já é homem. O Cro-Magnon é de 30 mil anos. É do tempo em que o homem começou a utilizar a caça e a pesca. E o primeiro "homo sapiens", que é o homem moderno, do qual se tem notícia é de 10 mil anos. Estes dados científicos, mas não assim são tão matemáticos. Os meios de que a ciência dispõe ainda não chegam a uma precisão. Mas a evolução hoje é uma questão de inteligência. São sinais que não se notam de uma geração para a outra, mas que contados os anos em milhões, dá muita diferença. A ficção científica explora muito o homem do futuro, que deverá ter uma cabeça descomunal, sem cabelos, o corpo esguio, sem o dente do ciso e sem sabe lá o que mais... é preciso esperar para ter certeza. Já o conhecimento de outros antepassados do homem está a depender de outras pesquisas e descobertas.


O GÊNESIS - III
O sentido por trás das narrativas
Para entender as narrações bíblicas da história da criação, vamos analisar certos detalhes:
1. Em Gen. 2,19 (história da costela). Esta narrativa tem o objetivo de dizer que o homem e a mulher são seres da mesma natureza. Era uma afirmação ousada para a cultura da época. O cristianismo trouxe esta verdade com sua doutrina. A mulher era tida, nas culturas daquele tempo, como um ser intermediário entre o homem e o animal. O cristianismo atribui-lhe o mesmo status do homem.

2. Em Gen. l,14 (criação dos astros). Os astros eram divinizados por muitos povos antigos. O hagiógrafo quer dizer, com a narativa da criação dos astros, que eles são apenas criaturas de Deus, não são deuses. Tanto que os chama de faróis, embora já soubesse os seus nomes. Deus os colocou lá no alto para separar a noite do dia e para fazer o calendário.

3. Em 1,26 (criação do homem). Neste ponto, a narrativa bíblica muda a flexão do verto e fala na primeira pessoa do plural: Façamos o homem... ‘Imagem e semelhança’: A relação que os antigos faziam entre a 'imagem' e a própria pessoa era tão viva que era tida como se fosse a pessoa mesma. Dizer que o homem é imagem de Deus é o mesmo que dizer que o homem é a representação de Deus no mundo. A semelhança, para dizer que não é a mesma coisa, não é outro Deus. De que modo o homem representa Deus no mundo? Em seu 'espirito'. É o que distingue o homem do restante do universo: as faculdades intelectuais, o estar acima da criação para conduzi-la, como se fosse Deus.

4. 'Cultivai a terra'... Aqui está inserido o conceito de trabalho. O trabalho já existia antes do pecado do homem. Foi o primeiro preceito que Deus mandou ao homem. Antes mesmo de mandar oferecer sacrifícios, mandou trabalhar. O que o pecado trouxe foi a penosidade do trabalho, o 'suor' do rosto, o esforço corporal para a sua realização.

5. 'Adão' é nome comum coletivo. O nome 'Adão' é mais do que o designativo de um ser singular. Significa um homem ou a humanidade. Assim também Eva tem um sentido coletivo. A distinção de sexo não é uma diferença apenas biológica, necessária para a reprodução da espécie humana, mas também uma distinção ética: corresponde ao relacionamento que deve haver entre ambos.

6. Inimizade entre homens e animais também não houve desde o inicio, mas com o pecado.

7. A árvore da vida é o aproveitamento de um elemento mitológico e é símbolo da imortalidade. A história da árvore do bem e do mal é para fazer notar que todo o mal deriva do pecado, mas que apesar do pecado, o destino final do homem é a imortalidade. Por que a serpente neste contexto? Ela era conhecida como o animal mais astuto da natureza. Por isso, ela foi usada pelo autor para personificar o mal. A segunda finalidade desta referência é apologética, porque era a serpente adorada como deus por algumas nações contemporâneas deles. O autor insiste em que ela é apenas criatura.

8. "Estavam nus e não se envergonhavam" Esta referência significa a harmonia do paraíso. Concretamente, nunca aconteceu um paraíso do modo como está na Bíblia. Observa-se que, sempre na natureza, as coisas acontecem numa evolução de perfeição, ou seja, do menos perfeito para o mais perfeito. Não houve este estado inicial de total equilíbrio para depois haver a desarmonia. O paraíso é mais que uma 'saudade', é uma 'esperança'.

9. O fruto do bem e do mal nada tem a ver com a maçã. Esta associação com a maçã tem origens culturais bem antigas, mas não é bíblica. Também não é apenas o conhecimento do bem e do mal que importa. "Conhecer" para os hebreus tinha um sentido bem mais profundo e íntimo. Não é o mero saber intelectual, mas o fato de ser árbitro entre o bem e o mal, de poder decidir entre o bem e o mal. Isto não aconteceu apenas naquela ocasião, mas acontece cada vez que o homem comete um pecado. Quer dizer, o pecado acontece porque o homem inverte os valores e quer julgar por si próprio ou segundo o seu parecer o que é bem e o que é mal. Só Deus tem este poder. Querendo se sobrepor a Deus, o homem erra, e então acontece aquela desordem.


O pecado original
1. O conceito bíblico de pecado
O primeiro pecado aconteceu quando o homem, pela primeira vez usou mal da liberdade. Isto acontece com cada pessoa no mundo. O entendimento do pecado original na concepção antiga não pode mais ser aceito hoje em dia no sentido histórico de um homem e uma mulher que pecaram e os filhos estão sofrendo as conseqüências. É necessária uma nova compreensão desta verdade bíblica.
É importante, para melhor compreensão desta parte da Bíblia considerar Adão não como um só homem singular, mas como representante de toda a humanidade. O hagiógrafo, ao dizer que "tudo era bom", tinha em vista responsabilizar o homem pela entrada do mal no mundo. Nos primeiros capítulos do gênesis, apresenta o mundo perfeito. Do terceiro em diante, faz quase uma oposição do que disse: isto significa que o homem é inclinado para o mal pela sua própria natureza e nisto está a essência do que se chama 'pecado original'.
Até pouco tempo, se acreditava que o pecado original era uma herança do pecado de um só homem (Adão), o que sempre repugnou que uma criança inocente já nascesse em pecado. Atualmente, se crê e se aplica este conceito ao fato de que a pessoa, ao nascer num mundo onde já há o pecado, embora sem culpa dele, terá esta tendência para fazer o mal, que pode ser superada com a graça de Deus. Visto que o homem é um ser imperfeito, ele poderá vacilar e praticar o mal, e assim o 'pecado' de cada indivíduo vai "contribuindo" para a continuação do mal no mundo.
O Batismo, como se entendia antigamente, servia apenas para 'apagar' o pecado original. Mas não é este o sentido mais adequado deste sacramento. Antes de tudo, o Batismo é uma consagração para dar ao indivíduo condições de vencer a luta contra o mal. Cristo veio diminuir a força do mal com os meios que trouxe, isto é, com a graça que trouxe do Pai. Mas esta força que inclina o homem para o mal sempre existe, embora contra a sua vontade. E é tão evidente que foi personificada como o 'demônio'...
Se todos continuam pecando, o pecado vai aumentando no mundo, ao invés de se acabar, e a situação vai piorando a cada dia, em vez de melhorar. E a tal vitória final do bem, que se espera, como fica? Isto vai depender do esforço de cada pessoa. JC já fez a sua parte e deixou os meios para que cada um fizesse a sua. A promessa divina de que o bem vencerá finalmente é válida e se caminha para isso. Mas a liberdade humana também continua viva e só quando o homem souber utilizá-la devidamente é que o mal perderá terreno. E o uso pleno da liberdade pelo homem só se dará na plenitude.

2. O ponto de vista da ciência
Na perspectiva evolucionista científica, como se explica tudo isto? Há duas explicações:
a) a monogenista, que defende a teoria de ter havido um único casal de homínidas que ultrapassou a barreira da hominização (racionalidade);
b) a poligenista, que acredita terem sido vários os casais que, numa mesma faixa temporal, conseguiram ultrapassar a barreira da irracionalidade para a racionalidade.
O monogenismo tem em seu favor o próprio texto da Bíblia, sobretudo a posição de Paulo em Romanos, 5, 12-15. O poligenismo tem como principal dificuldade para sua aceitação pela Igreja exatamente este texto paulino, pelo conflito que inviabiliza qualquer tentativa de conciliação. Mas é preciso se considerar que São Paulo tem aí neste texto o interesse em opor o pecado existente no mundo com a graça divina: ou seja, se o pecado é grande, a graça é bem maior. Na verdade, ele não quer ensinar um conceito, por exemplo que o pecado original é de um só ou de muitos, mas enfatizar a superabundância da graça sobre o pecado. Entendido assim, para a validade do argumento de S.Paulo não é de necessidade absoluta a premissa de um só autor do pecado. Isto tem sido uma complementação histórico-cultural. Do mesmo modo que a história de Jonas, pelo fato de que JC a repetiu no Evangelho, nem por isso deixa de ser simbólica. Porém, explicar como se deu o pecado original, isto não se pode dizer com absoluta certeza nem no monogenismo nem no poligenismo.


Cronologia e História da Salvação

1. Bíblia e cronologia
O fator cronológico não está presente na Bíblia de uma forma linear. Assim, muitas histórias que aparecem no início da Bíblia são, de fato, mais recentes do que se pode pensar. A história de Caim e Abel, por exemplo, supõe um tempo em que os homens já estavam espalhados na terra, para que pudesse haver perseguição a ele. O dilúvio, a torre de Babel e outras estão nesta linha, pois supõem a existência de muitas pessoas e lugares. Por que juntar estes relatos fantasiosos à história verdadeira? Têm algum valor esta apelação para fatos que não aconteceram, a fim de completar a história?
A história da salvação, mais do que uma história propriamente dita, é uma interpretação da história humana. O fato em si, na história da salvação, não é tão importante quanto a interpretação do fato, a mensagem que se pode tirar dele: ele pode ser o paradigma de uma intervenção de Deus num fato real. Não importa, por exemplo, como foi criado o mundo (monogenismo, poligenismo, em sete dias, diretamente ou não, ...) o que importa é que foi criado por Deus. O pecado original também não importa como aconteceu; mas que aconteceu. Caim e Abel não se sabe onde viveram nem se viveram mesmo, mas esta história representa um modo histórico de agir do homem. Abraão com Isaac, Jacó com Labão... não importa que tenham ou não acontecido, mas importa a interpretação destes fatos, de como Deus intervém em favor de seus amados.
Entre os capítulos IV e V, assim como entre os cap. X e XI do gênesis, há genealogias de Adão a Noé e de Noé a Abraão, respectivamente. O que isto significa? Qual a intenção do escritor sagrado? Estas genealogias foram intercaladas aí com o intuito de fazer a ligação, estabelecer a seqüência dos fatos. Elas, provavelmente, não são autênticas. Podem até ter sido transcritas de livros de genealogias dos reis da Babilônia (ante e pós diluvianos). A própria história do dilúvio mostra, assim, um progressivo distanciamento dos homens de Deus, preparando a chegada dos patriarcas.

2. HISTÓRIA DOS PATRIARCAS (Vocação de Abraão 11, 27 a 12)
A formação literária da história dos Patriarcas foi composta a partir de várias sagas e lendas muito antigas, algumas até anteriores à sua chegada a Canaã. Outras são etiológicas e contemporâneas a ele. Os compiladores uniram estas tradições, muitas vezes sem cuidar de verificar a sua ordem cronológica. Como se pode interpretar isto com a luz da fé? Não se trata de acreditar em tudo nos mínimos detalhes, mas procurar o seu significado para a História da Salvação.
Em Gen 11, 27, diz: "O pai de Abraão saiu da cidade com a família". Por que isto? Historicamente, sabe-se que havia muitas migrações naquela época, por causa de seca, de perseguições políticas... Em Gen 12, l, diz: "Abraão saiu com a família;"... não fala mais no pai. Por que esta omissão? Na verdade, trata-se de duas tradições, uma explicando a outra. Esta 'saída' deve ser entendida como parte de um plano de Deus que o dirige desde o começo. O caso de Deus estar contatando constantemente com Abraão é mais uma linguagem mítica, visualizando o desígnio de Deus para Abraão.
Aquelas histórias a respeito de Abraão, que sempre vence em várias situações, também têm a finalidade de mostrar a sagacidade e a sabedoria do antepassado, o que, naturalmente era uma glória para a família. Na seqüência da tradição, vai mostrar que Deus escolheu Abraão por espontânea vontade e o autor faz questão de dizer que ele foi o eleito, citando isto várias vezes. Abraão é apresentado como homem de fé em várias ocasiões (saída da terra, sacrifício de Isaac...).
Aliás, a propósito do sacrifício de Isaac, isto é uma saga para protestar contra os sacrifícios humanos, cerimônias muito praticadas pelos povos vizinhos. O primogênito de tudo poderia ser sacrificado, menos do homem, que deveria ser substituído. A circuncisão era também um rito pré-israelita, talvez um rito de iniciação ao matrimônio. Israel adotou este rito e aos poucos ele se tornou religioso. A história que há na Bíblia é uma interpretação ou legenda interpretativa do autor sobre o fato.
Nas várias legendas e sagas da história de Abraão, os autores queriam demonstrar o desígnio de Deus na história, a interpretação que eles querem dar a estes fatos. Realmente, se sabe, pelas descobertas arqueológicas recentes, que o texto se refere a termos, costumes, nomes, objetos usados na época dos patriarcas, mais ou menos contemporâneos à época de Hamurabi. Vários filósofos racionalistas do século passado tentaram negar isto. Mas o importante sempre não é o fato, e sim a interpretação dele: Deus esteve sempre com Abraão e tudo que acontecia com ele era o plano de Deus, já com uma finalidade determinada em vista.
Na história dos patriarcas, Isaac não é tão importante. Apenas a transição de Abraão para Jacó. Abraão foi o "fiel", Jacó, o "predestinado". As histórias a respeito dele e Esaú são apenas para mostrar a sagacidade do irmão mais novo. O prato de lentilhas seria uma explicação popular para o fato de Jacó ser o herdeiro. O sonho de Jacó é uma saga antiquíssima. "EL", como nome de Deus é uma das designações mais antigas usadas pelos cananeus. O autor refere-se a Javé com este mesmo título.
Qual o ensinamento da história dos patriarcas? Cada pessoa lê e interpreta esta história conforme o espírito de sua época e a aplica conforme a situação. Assim, se considerou Abraão como homem de fé e exemplo para eles. Como Abraão foi provado, também eles serão. Para nós ainda hoje caminhamos na esperança das promessas feitas a Abraão. Para Israel, as promessas se referiam ao Messias. Mas após JC abriu-se uma nova perspectiva. Nas ocasiões mais difíceis, os israelitas liam estas demonstrações de fé dos patriarcas e com isto tinham mais forças para superar as dificuldades. Assim também nós. E o mesmo se diga dos outros patriarcas.


O Ê X O D O

1. Contextualização histórica
O êxodo histórico do povo de Israel começa por volta do século XIII a.C. O vers. 8 do cap. 1 se refere a Ramsés II, faraó do Egito. Há um espaço de vários séculos entre este fato e os fatos que se seguem. Por isso, o compilador colocou entre eles uma genealogia. Este tipo de literatura com genealogia intercalada é do tipo da tradição sacerdotal. É uma genealogia artificial. Os nomes são epônimos para explicar-lhes a origem. Como a história só foi composta muito tempo depois (séc. VI), eles provavelmente não sabiam mais quem teria sido primeiro.
Mas havia muitas lendas e tradições e naturalmente eles se basearam nelas. Por exemplo, com Judá. Quando os hebreus chegaram, já havia lá as montanhas conhecidas como montanhas de Judá. Os que habitaram aquela região ficaram sendo chamados filhos de Judá, judeus... Quando, tempos depois, foram escrever a história, completaram o restante com as lendas e tradições, resultando daí o que está na Bíblia. Contudo, sabe-se que a citação de Ex 1,11 é histórica: foram cidades construídas no tempo de Ramsés II, que foi um dos maiores faraós e teve um reinado de muito progresso.
Na história do Egito, os historiadores dividem três períodos:

1. antigo império - 3a. a 6a. dinastia (2800 a 2300 a.C.); 2. médio império - 11a. a 17a. dinastia (2100 a 1580 a. C.); 3. novo império - 18a. a 20a. dinastia (1580 a 1090 ou 660 a. C.)
Os fatos relatados no Êxodo se passaram na terceira fase, mais precisamente na 19a. dinastia, fundada por Ramsés I. Foi um período de grande prosperidade, extensão de domínios, crescimento... Por causa disto, muita gente migrava da Ásia para lá, inclusive prisioneiros de guerra, e também de outros países vinha gente para trabalhar, para adquirir melhores condições de vida. Então, muitos foram feitos escravos nos empregos a que se incorporaram, com as mudanças na conjuntura política.
Com a decadência do império faraônico, em certa época fracassou a vigilância e muitos fugiram. Foi mais ou menos neste contexto que se deu a saída dos hebreus do Egito, contada na Bíblia com toda aquela linguagem mítica e épica. Não foram, portanto, só os Israelitas que fugiram do Egito naquela ocasião, mas diversos povos que se encontravam num regime de opressão, por serem estrangeiros nas terras do Egito. A opressão, historicamente, era fato. A fuga dos escravos, também.
Os primeiros capítulos do Êxodo contam a preparação da fuga. E neles há dois fatos que serão perpetuamente lembrados: a libertação do Egito e a aliança no Sinai.

2. Moisés
O nascimento de Moisés é uma saga etimológica, para explicar o seu nome. Moisés significa "aquele que foi tirado". Seu nome, originalmente, seria Tutmoses, o que significaria 'filho de Tut'. Eles, certamente subtraíram o primeiro nome, por se identificar com um Deus pagão, e ficou apenas Moses, que deu MOSHE, em hebraico. Historicamente, quase nada consta de Moisés. Mas não há motivos para se negar sua existência.
Em Ex. 2,11, conta a fuga de Moisés para Madian. Ele teria visto um feitor açoitando um israelita e o matou. Foi descoberto e, por isso, obrigado a fugir. O seu romance com Séfora e os relatos associados são uma introdução para apresentar Moisés como vindo do deserto com a missão de salvar o povo. A narração de Ex 3,1 a 10 refere-se ao monte Horeb que, talvez, já era uma montanha sagrada; e a sarça ardente seria referente a uma árvore sagrada na qual os pagãos ofereciam sacrifícios aos seus deuses. O cap.3 fala da vocação de Moisés, em linguagem mítica, como acontecera aos profetas. O hebreu, para dizer que um tal fato era divino, necessitava visualizar um fato histórico. Todo profeta, quando recebe uma missão de Deus, a princípio recusa. Mas depois, Deus faz a promessa... assim aconteceu com Moisés.

3. Autodefinição de Javé
A citação "Eu sou aquele que é" foi sempre interpretada filosoficamente, mas por um aspecto ontológico insinuado muito depois. Deus, na verdade, apenas deixou de citar um nome, por causa do que isto iria significar na mentalidade deles. Os verbos "ser" e "existir" em hebraico distinguem-se apenas por uma letra. Aquele que é, que vive, que existe... são expressões equivalentes.
Javé e Jeová são a tradução verbal do tetragrama que os judeus não pronunciavam. De principio, se adotava a forma Jeová, pelo seguinte fato. Descobriu-se que pelo excessivo medo de pronunciar o Santo Nome em vão (2o. mandamento), todas as vezes que na leitura aparecia o nome de Deus, o substituíam por outro correspondente. Usavam muito "Adonai" (Senhor) ou "Elion" (Altíssimo). Então, os estudiosos colocaram as vogais da palavra "Adonai" entre as consoantes do tetragrama JV, o que deu Jeová. Posteriormente, se descobriu que Javé será a forma mais apropriada, e não Jeová.
Num breve retrospecto, devemos dizer que sempre ao analisar um fato distinguiremos duas épocas: o tempo em que o fato realmente aconteceu (sec. XIII) e o tempo em que foi escrito (séc. VI ou V). Há grande modificação durante o tempo em que o fato passou transmitido oralmente, e há também muita projeção de fatos da época em que foi escrito, muita estilização.

4. As Pragas
São histórias estilizadas e artificiais. Quando os mais velhos foram contar para os mais novos a história da libertação do Egito, eles se quiseram mostrar muitas vezes a intervenção poderosa de Deus contra o inimigo e assim glosaram os fatos com situações fantasiosas. Que há aí de histórico? Cada fato tem relação com algum fenômeno acontecido, mas não na quantidade que a Bíblia relata. Eles transportaram tudo para um tempo determinado e deram uma significação e interpretação religiosa.
Com relação à morte dos primogênitos, certamente durante o tempo em que os hebreus estiveram lá aconteceu a morte de um filho do Faraó e eles atribuíram também significação religiosa a este fato, como sendo um desígnio divino. Mas o que interessa não é o fato, e sim a interpretação do fato. Eles queriam convencer o leitor de que foi Deus quem fez tudo isso.
A história das pragas evoluiu do tempo em que se passaram historicamente para o tempo em que foi escrita. Na água que se transformou em sangue está o melhor exemplo desta evolução: estão presentes as três tradições (Javista, Eloísta e Sacerdotal). Em Ex. 4,9, diz: 'pouco de água tirada num balde, com a ação de Moisés se transformou em sangue' (javista); em 7,17-19, diz que 'todo o Nilo se transformou em sangue'. É uma evolução da anterior (sacerdotal). A seguir, diz que 'todas as águas ficaram vermelhas'. Note-se nisto tudo uma constante evolução do fenômeno, certamente ocasionado pela tradição oral, antes das histórias serem escritas.

5. Instituição da Páscoa (cap. 12)
O autor retrojeta para o tempo de Moisés um rito pascal instituído depois do exílio, usado no templo de Jerusalém. O vers. 1 é a ligação. Será o primeiro mês do ano, isto porque até o tempo de Josias (séc VII) o ano começava no outono (outubro), igual ao calendário dos babilônios. Com o reinado de Josias, a festa foi mudada de data para a primavera, a fim de não se confundir com o culto da fertilidade, celebrado pelos pagãos no inicio do ano. A páscoa já existia mesmo antes dos cananeus.
A origem da palavra 'páscoa' vem de "pashá", que significa coxear, mancar. Daí passou para pular, dançar, festejar, passar por cima, salvar. "O anjo de Deus saltou as casas dos hebreus para não lhes fazer mal." A festa dos ázimos também era pagã, mas era a festa agrícola correspondente à páscoa, que era pastoril. O caso de não comer pão com fermento é porque fermento é deterioração da matéria, sinal de impureza. Não se sabe como, depois eles juntaram as duas festas.
O fato narrado em Ex 12,6 é uma alusão á saída do Egito, é um rito supersticioso e mágico dos nômades, para livrar de qualquer mal espírito as casas: pintar os umbrais com sangue. O autor coloca aí como se fosse na noite posterior às pragas, na noite da partida. Em 12,15, fala da festa dos ázimos. Na pressa da saída, não tiveram tempo de fermentar o pão. E manda comer pão assim por sete dias. Em 12, 27, há um rito que se cumpre ainda hoje na tradição dos hebreus: um menino pergunta ao pai, que conta toda a história. Fala da libertação, mas não como fato passado, e sim como se acontecesse com eles. Todas as vezes que celebravam uma libertação, eles referiam este fato.
A passagem do Mar Vermelho é uma narração epopéica, enriquecida pela liturgia. O Cap.15 é o canto de Moisés, mas este canto não é exatamente dele. Fala de vitórias sobre os filisteus, os amalecitas, povos posteriores a ele. Foi feito por outro autor e atribuído a Moisés. A passagem 15, 20-21 é um texto muito antigo. Teria sido mesmo após a passagem do mar vermelho.
Em 19,4 começa a narração da aliança. A arqueologia mostrou várias alianças entre reis antigos, parecidos com esta do Sinai, redigidas no mesmo esquema. A de Israel tem sua conotação própria, porque é com Deus. A insistência em trovões e relâmpagos talvez são fatos que provavelmente teriam acontecido o que é muito possível em região vulcânica como lá.

6. A Aliança
A narração da entrega dos mandamentos é um esforço para colocar dentro da aliança o decálogo, uns preceitos imperativos e outros explicativos, uns mais antigos e outros mais recentes. Em parte vêm de Moisés, pois ele teria dado alguns princípios gerais para o governo do povo, e outros foram acrescentados, tirados de outros povos, preceitos conhecidos e adotados pelos povos vizinhos.
Eis o esquema comum das alianças, que foi seguido pelos hebreus:
l. introdução histórica 2. proposta (mandamentos) 3. pacto (compromisso) 4. bênçãos e maldições 5. sacrifício: a tábua é colocada no santuário de um deus.
Este esquema era das alianças que ordinariamente se faziam naquela época. Como se vê, pouco ou nada há de diferente na esquematização da Aliança de Deus com Israel. Até a conservação das tábuas houve também.
A introdução (19,3-19) é de origem sacerdotal. 3-6 é o discurso de Deus como introdução à Aliança; 7-15 é a preparação da vinda de Deus para onde está o povo; 16-19 é uma teofania (aparição de Deus na tempestade). O vers 20 é uma repetição disto tudo, originária de outra tradição. A seguir, a narração é interrompida para que sejam intercalados os mandamentos. O decálogo está em 20, 1-17. É um código de leis bastante antigo, muito inspirado em Hamurabi.
As tempestades a que se refere o cap. 19 são teofanias e constam nas tradições Javista, Eloísta e Deuteronômica. Para os antigos, relâmpagos e trovões eram manifestações de Deus. Os exegetas não negam que possa ser a narração de um fato natural da época. No seu discurso, Deus faz questão de dizer "toda a terra é minha", para que o povo não pense numa religião nacionalista, mas universal. "Reino de Sacerdotes", porque no mundo de Javé todos são mediadores; "nação santa", ou seja, em hebraico 'kadosh' = separada. A "nuvem" é a presença de Deus, e o "som da trombeta" é um modo de descrever o ruído do trovão. O povo não vê Deus, vê apenas os sinais.
O vers.22 é da lei de talião. É muito rigorosa, em relação ao Evangelho, mas é um grande progresso comparada às leis mais antigas. O cap. 24 é quase todo de origem eloista. Tem algo de sacerdotal. Vers 3 é um compromisso do povo; vers. 5 é o holocausto, vítima pacífica. A seguir, a aspersão do povo com o sangue, para consumar a aliança. JC na instituição da eucaristia faz alusão às palavras de Moisés. O vers 11 é o mesmo sacrifício, descrito na tradição javista.
Os hebreus nem sempre entenderam bem o sentido da aliança. O seu significado foi dado pelos profetas, mais tarde, acentuando não tanto o contrato jurídico, mas o relacionamento pessoal de Deus, acompanhando-os no deserto.

7. Os Mandamentos
Um problema que sempre perturbou os hebreus foi eles distinguirem o Deus verdadeiro da imagem de Deus. Se Moisés deixasse o povo fazer imagens, eles a adorariam como Deus. Foi preciso muito tempo para que eles chegassem a uma concepção abstrata da divindade. O "Deus que ninguém vê" era um problema sério, e por isso eles caíram muitas vezes em idolatria. Dai a séria proibição na Bíblia de se fazerem imagens.
O Decálogo católico é uma adaptação. Nele está modificado o 6o. mandamento. Na Bíblia diz: "não cometer adultério", e no catecismo diz: 'não pecar contra a castidade'; também os 9 e 10 mandamentos na Bíblia são um só, e no catecismo está dividido. Esta distinção foi precisa para se completarem os dez, porque eles suprimiram o que proibia a fabricação de imagens, e isto sempre foi causa de polêmica com os protestantes.
Aqui está a discriminação dos mandamentos na Bíblia (cap. 20):
1o. mandamento = vers 3 - (Não terás outros deuses diante de mim.) 2o. mandamento = vers 4 a 6 - (Não farás para ti imagem esculpida... não te prostrarás diante destes deuses e não os servirás...) 3o. mandamento = vers 7 - (Não pronunciarás em vão o nome do teu Deus) 4o. mandamento = vers 8 a 11 - (Trabalharás durante seis dias... o sétimo dia é o sábado de Javé) 5o. mandamento = vers 12 - (Honra teu pai e tua mãe) 6o. mandamento = vers 13 - (Não matarás) 7o. mandamento = vers 14 - (Não cometerás adultério) 8o. mandamento = vers 15 - (Não roubarás) 9o. mandamento = vers 16 - (Não apresentarás um falso testemunho contra o próximo) 10o.mandamento = vers 17 - (Não cobiçarás a casa do próximo, nem sua mulher, nem seu escravo nem sua escrava, nem seu boi, seu jumento nem coisa alguma que lhe pertença.

Parte III – O Novo Testamento

O NOVO TESTAMENTO (1)
1. O PROBLEMA SINÓTICO
Até o século XVII, a Biblia era considerada absolutamente como palavra ditada por Deus. Partindo do conceito de inspiração bíblica como ditado, ninguém duvidava de nada. Esta compreensão havia sido tema de inevitáveis e incontáveis polêmicas interpretativas.
A partir de 1776, começou a ser despertada uma crítica do texto bíblico, motivada pelos problemas levantados pelos filósofos racionalistas. O racionalismo já estava influenciado pelo iluminismo, defendendo a autosuficiencia do homem e começou por negar no Evangelho tudo que era transcendental, restando assim pouca coisa. Esta crítica causou grande constrangimento no meio do cristianismo.
O racionalismo queria demonstrar seu ponto de vista através da crítica textual. O trabalho deles despertou os católicos para fazerem o mesmo, mas enfatizando o outro lado, ou seja, a defesa da fé. E concluiram que a mesma critica literária tinha possibilidades de ajudar a entender melhor o Evangelho. Contribuiram para isto os progressos das novas ciências da psicologia e da arqueologia. Entao surgiu o método critico-histórico, que começou a ser usado no sentido positivo pelos teólogos cristãos.
Foi então, no século XVIII, descoberto o assim chamado problema sinótico. O estudo crítico demonstrou que no texto dos evangelhos há divergências e diferenças que evidenciam o trabalho do pessoal do escritor, sem deixar de lado a inspiração divina. Desde então, os exegetas se viram na contingência de considerar o Evangelho como um livro escrito por homens, que têm suas qualidades e seus defeitos, e estão sujeitos também à critica.
O problema sinótico se funda na constatação de que os três primeiros Evangelhos (Mateus, Marcos e Lucas) têm muitos aspectos em comum; por outro lado, têm também muitas diferenças. As semelhanças chegam a ser desde palavras a textos inteiros. As diferenças estão no fato de alguns narrarem certos detalhes e outros omitirem, além de haver discrepâncias em alguns detalhes.
Colocando em números, o problema sinótico apresenta-se da seguinte forma:
a) dos 661 versículos do Egangelho de Marcos, 600 estão também no de Mateus, e 350 estão no de Lucas.
b) os evangelhos de Mateus e Lucas, tem 240 versículos em comum, e que não constam no Evangelho de Marcos.
c) além disso, tanto Mateus como Lucas tem versículos próprios a cada um.
Como exemplos destas semelhanças, podemos citar uma passagem em gue Marcos descreve assim: "caindo a tarde, quando o sol descia..."; no Evangelho de Mateus está apenas a primeira parte; no de Lucas está a segunda. Há diversas outras passagens assim, como no episódio do marido que morreu sem deixar descendência.
Descoberto o problema, procurou-se interpretar. Isto se tornou dificil, porque ao lado de grandes semelhanças, há também constrastes. Como se pode explicar isto? No caso da infância de Jesus, por exemplo, Marcos não diz nada. Mateus diz alguma coisa, enquanto Lucas apresenta diversas informações.
Numa concepção tradicional, não haveria esta dificuldade, porque todos acreditavam que os apóstolos ouviram tudo de Jesus e depois escreveram o que sabiam quase decorado, usando por isso até as mesmas palavras. Mas descobriu-se que os Evangelhos foram escritos bastante tempo depois da morte de Cristo, em épocas diferentes, baseados em tradições orais. Como pode ter acontecido de terem os Evangelistas usado as mesmas palavras, estando em lugares diferentes e até em épocas diferentes?
Aí a crítica histórica entrou em ação e surgiram várias explicações. Ainda no século XIX, dava-se como resposta que Mateus teria sido o primeiro a ser escrito. Mas Mateus é um texto muito elaborado e deve ser de época posterior. Além disso, não foi escrito em aramaico, como se pensava, mas seu original é em grego. Portanto, não é aquele do qual Eusébio noticia, que "Mateus escrevera em aramaico e cada um entendeu e interpretou como pôde".
Posteriormente, explicou-se que haveria uma 'fonte' ou tradição oral bem antiga, e baseado nesta tradição cada autor escreveu os fatos ao seu modo. Esta explicação de inicio foi aceita, mas a coincidência de palavras não pode ser justificada por uma tradiçao apenas oral. Há necessidade de um instrumento literário.
Daí surgiu a teoria das "duas fontes", hoje aceita em todos, porque explica tudo. Como dissemos, nos evangelhos sinóticos podemos distinguir três partes: 1. aquelas que são narradas pelos três; 2. aquelas que são narradas apenas por dois; e 3. aquelas narradas apenas por um.
Quanto à primeira parte, a crítica mostrou que o primeiro evangelho a ser escrito foi Marcos, por ser mais rústico e incompleto, em contraposiçao aos outros, mais elaborados e mais evoluidos. Foi escrito em Roma, porque ele não explica certos termos latinos, enquanto os outros explicam. A data aproximada é entre 60 e 70, mas seguramente antes de 70, pois este foi o ano da destruiçao de Jerusalém, e eles ainda confundiam este acontecimento com o fim do mundo. Os outros já nao fazem assim. Por tudo isto se concluiu que Marcos escreveu primeiro, provavelmente baseado na pregaçao de Pedro e na tradiçao oral.
Os outros dois (Mateus e Lucas) copiaram de Marcos, melhorando o texto e adaptando conforme e ocasião, usando também uma tradição oral. Assim se explica o fato de coincidencia entre os três evangelistas.
A segunda parte, a princípio foi explicada como se um tivesse copiado do outro, mas provavelmente eles não se conheceram. Portanto, ambos devem ter se inspirado em outra fonte, talvez já em grego (não se sabe se oral ou escrita) que servia de base para uma catequese primitiva. Talvez até aquele texto a que se refere Eusébio, pois é anterior aos Evangelhos escritos. É a chamada "FONTE Q" (de Quelle, em alemão, fonte). Esta fonte só foi conhecida de Mateus e Lucas.
A terceira parte tem explicaçao mais fácil: cada escritor fez uso de certas fontes que havia em suas regiões, e que os outros não conheceram. Com certeza eram tradições muito enfeitadas pela fantasia do povo. Como moravam longe entre si, um não conheceu as fontes particulares do outro. Assim em Mateus, por exemplo, discriminam-se: as partes copiadas de Marcos são principalmente os fatos extraordinários (milagres... ); as copiadas de Q são sobretudo os discursos (parabolas...); as copiadas das fontes particulares são outros pormenores.
Convem notar que nem Marcos nem a fonte Q eram crônicas, ou seja, relatos dos acontecimentos, mas escritos elaborados pela Igreja primitiva para uso na catequese. Cristo morreu em torno do ano 30. O evangelho de Marcos só foi escrito por volta de 65. Neste meio termo, a tradição foi transmitida oralmente, ou por meio de pequenos folhetos, uns contendo as parábolas, outros contando os milagres, outros contando os fatos da infância; outro contando a paixão... Em outras palavras, havia grande proliferação de escritos esparsos nas várias Igrejas e nas várias regiões.
O prólogo de Lucas faz-nos supor 3 estágios na formação do Evangelho: a) há as testemunhas oculares, que contaram o que presenciaram; b ) há os que tentaram compilar isso, as pequenas fontes; como diz Lucas "muitos empreenderam... "; c) a obra do evangelista; como diz Lucas, "escrevi a exposição ordenada dos fatos".
Quando dizemos que houve 'cópias' uns dos outros, devemos entender que o Evangelista nao copiou simplesmente o outro, mas compôs baseado em suas pesquisas, e acrescentou algo de si. Além disso, o Evangelho não é um documento histórico narrativo da vida de Jesus, mas reproduz a sua mensagem, muito embora não sua mensagem total, pois tudo que JC ensinou não está nos Evangelhos. Eles escreveram apenas o que interessava àquela Igreja, naquelas circunstâncias. Assim, por exemplo, no traslado do fato do centurião, retirado da fonte Q, Mateus escreveu que o centurião veio em pessoa falar; e Lucas diz que ele mandou os anciãos falarem. E Mateus colocou neste contexto o final que Lucas só colocou no Cap.13 "muitos virão do oriente e do ocidente sentar-se com Isaac e Jacó..."
Noutra passagem, Mateus fala em paralisia, porque ele queria salientar apenas que os judeus não reconheceram o reino de Deus, o que os chocava. Mas Lucas diz 'doente quase à morte', porque o que impressionava aos gregos era o Cristo, Senhor da vida. Só para mostrar como o contexto é importante, em João no episódio do centurião, este convida JC para ir à casa dele. João não tinha interesse em mostrar nenhuma faceta da personalidade de JC, mas apenas e como um sinal: o homem chegou desconfiando de JC, mas no fim tanto ele como sua família, todos creram.
Mateus 22,1-14 e Lucas 14,16-24 narram a mesma parábola. Mas Mateus junta duas parábolas numa só: a dos convidados ao banquete com a da veste nupcial. Mateus, que seria mais longo, não especificou as funções de cada um. Além disso, acrescenta o episódio de incendiar a cidade e maltratar os servos. Lucas omite estes detalhes, mas especifica as ocupações dos convidados. Omite porém a veste nupcial. Mateus, escrevendo para judeus, tinha interesse em acentuar a rejeição deles e o convite aos pagãos; Lucas, escrevendo para gregos, não tinha esta meta.
Os textos de Mt 19,1-9; Mc 10,1-10; Lc 16, 18 falam no divórcio. Era discutida no tempo de JC uma prescriçao que estava contida na lei de Moisés. Os textos em grego divergem por uma palavra, dando margem a duas interpretaçoes. Um destes textos gregos apresenta a expressão "mê epí pornéias = não em caso de fornicação", e no outro diz: "paréctos logoû pornéias = a nao ser no caso de fornicação. É uma questao difícil de resolver, pela dificuldade da tradução de "porneia". Esta palavra vem do grego "pornê” (meretriz). "Porneia" deve significar qualquer "atividade sexual" fora do matrimônio. Além da dificuldade textual há a dificuldade jurídica. Não se pode dizer que JC tenha aconselhado isto, porque assim estaria anulando todo o NT nem se poderia entender o seu raciocínio na ocasião.
O problema ainda permanece. Uma das soluções que teve aceitação em certo tempo foi a de um autor francês, interpretando assim: esta palavra grega 'porneia' teria sido empregada para traduzir a palavra hebraica 'zenût', que quer dizer 'concubinato', um costume muito difundido entre os judeus. O concubinato consistia num contrato bilateral entre um casal interessado que vivia como casados, sem efeito legal. Então o texto se referiria a eles: o divórcio é proibido, 'a não ser em caso de concubinato', pois não sendo casados legalmente, não haveria óbice. Os outros autores (fora Mateus) não colocaram esta ressalva, porque nas situações deles não havia o costume. Esta solução não foi aceita porque seria um pleonasmo da parte de JC repetir um conselho ou uma ordem.

2. VALOR DOS EVANGELHOS
Os Evangelhos são livros históricos? Jesus Cristo viveu realmente? Disse tudo aquilo que foi escrito? Em primeiro lugar, dizemos que os Evangelhos, muito mais narrativas de fatos históricos, são baseados em fatos históricos, fundamentados no fato histórico da vida e obra de Jesus Cristo. Não se pode provar fato por fato, ou seja, com todas as minúcias. Mas não se pode negar o valor histórico geral dos fatos, por exemplo, que Cristo fez milagres. O modo como os autores escrevem, os costumes, a cultura, as palavras, a mentalidade, corresponde às das pessoas que viviam naquela época.
Os impostos e as leis, as religiões (saduceus, publicanos, fariseus, zelotes...), as cidades e aldeias da época, a personalidade de Cristo (ás vezes contradizendo o que era comum na época), a originalidade de Jesus, etc, tudo isso forma um conjunto de fatos que seriam quase impossíveis de inventar mais tarde, organizados com tanta coerência e perfeição. Outros fatos que não se concebe terem sido simplesmente inventados, mesmo por pesssoas que acreditassem neles: a paixão, a morte e a ressurreição. Hoje a cruz é glória e símbolo, mas na época era a mais humilhante das condenações. A história da paixão seria contraproducente, vergonhosa para quem queria apregoar aquela doutrina. A covardia dos Apóstolos ao abandonarem o Mestre... estas coisas, decididamente não seriam perpetradas por quem aceitava Cristo. Eles se esforçaram por justificar estes fatos associando com as profecias do AT, muitas vezes apenas por acomodação, por coincidência.
Finalmente, podemos dizer: os Evangelhos não são livros históricos no sentido que se entende esta palavra atualmente, mas seguramente são baseados em acontecimentos históricos. Alguns autores, além dos evangelistas, falaram de JC. Flávius Josephus, historiador contemporâneo de JC, fariseu, conta detalhes daquele tempo, embora com aspecto tendencioso para a ótica dos fariseus, mas isto era mesmo de se esperar, isto é, que ele não falasse mais de JC e de outros movimentos messiânicos, é preciso se notar que em vista da dominação dos romanos, ele foi cauteloso para não assustá-los escrevendo sobre estes movimentos considerados por eles 'subversivos'. Assim, só trataram mais sobre JC os que se interessavam por ele (os apóstolos, no caso). Também Tácito, historiador romano, escreveu os "Anais" no tempo de Trajano (116/117) e fala na execução de Cristo e no surgimento do Cristianismo. Portanto, mesmo outras pessoas que não eram cristãos dão testemunho da vida, paixão e morte de Cristo.


O NOVO TESTAMENTO (2)

EVANGELHO SEGUNDO MATEUS

1. DISCUSSÃO ACERCA DA AUTORIA
O primeiro problema que se coloca acerca deste Evangelho é a sua autenticidade. Discute-se a autoria deste evangelho por parte de Mateus. Contudo, o fato é que nenhum dos evangelista colocou o seu nome no escrito. Este primeiro evangelho foi abribuído a Mateus por causa de uma notícia veiculada por Eusébio, citando Papias, de que "Levi (Mateus) escreveu as palavras do Senhor na língua dos judeus”, e desde então interpretou-se que este escrito cujo autor não fora identificado poderia ser de sua autoria. Esta tradição foi abandonada posteriormente depois de se descobrir que o original deste evangelho foi escrito em grego e não aramaico.
2. PERFIL DO AUTOR
Embora sem ter certeza do nome do autor, verifica-se que este evangelho foi escrito por um cristão vindo do judaísmo, conhecedor da Escritura, fiel à tradição. Sabe-se da sua origem judaica porque este evangelho fala em 'reino dos céus' e não 'reino de Deus', porque os judeus não pronunciavam o nome de Deus. Além disso, dispensa a explicação dos costumes dos judeus, porque era fato corriqueiro para o seu autor, no entanto Marcos explica estes costumes, que para ele eram novidades. Por exemplo, em 24, 20 tem a seguinte passagem: "pedi para que a vossa fuga não seja no inverno nem no sábado. A mesma passagem há em Marcos 13,18, porém sem a parte final ('nem no sábado'), que é um acréscimo de Mateus, por causa do costume judeu.
3. COMPOSIÇÃO LITERÁRIA
Na composição literária deste evangelho, o autor empregou como fontes o próprio Evangelho de Marcos, a fonte Q e outros escritos particulares. Fez um trabalho de compilação bastante pessoal, adaptando e completando as "fontes" com conhecimentos próprios. Ele é chamado 'o homem dos discursos', porque é o que os cita maior número de vezes as fontes.
4. OBJETIVO DOUTRINÁRIO
Do ponto de vista teológico, Mateus tinha em vista mostrar aos judeus que JC é filho de Davi e Abraão, portanto, o Messias de Israel. Cita constantemente o Antigo Testamento. Exorta os fiéis a aceitarem JC como Messias. No tempo em que foi escrito, a Igreja já ultrapassara os limites de Israel. Fala na universalidade da Igreja, à qual são convidados os judeus e mas também todos os outros povos. Termina com a missão universal: "Ide, batizai e pregai a todos os povos...” Do ponto de vista cristológico, considera JC como Rei, Messias que foi rejeitado e criou outro povo, que é a "Ecclesia" (Igreja). Emprega o termo 'kyrios' (Senhor), enquanto os outros usam o termo 'Mestre'.
5. CRONOLOGIA
O tempo em que foi escrito este evangelho varia entre 80 e 100 d.C. Seguramente foi depois de 70, pois pressupõe que já houve a destruição de Jerusalém, e também é posterior ao evangelho de Marcos, pois demonstra grande evolução teológica em relação a este. Foi escrito na Palestina em grego, em bom estilo literário, para leitores de língua grega.


O NOVO TESTAMENTO (3)
EVANGELHO SEGUNDO MARCOS

1. PERFIL DO AUTOR
Conforme a mais antiga tradição, foi escrito por um tal João Marcos, filho de uma mulher chamada Maria, que tinha uma casa em Jerusalém. É o que noticia Papias. Em At 12,12 e 12,25, há referência a João Marcos e sua mãe. Serviu como fonte para Lucas e Mateus, tendo ele próprio se utilizado de outras "fontes".
2. COMPOSIÇÃO LITERÁRIA
É escrito em estilo muito simples e com pouca precisão no aspecto histórico. Descuida-se com a sequência cronológica. Tem pouca elaboração teológica. Usa muitas palavras aramaicas, o que mostra sua proximidade dos originais em que se baseou. (Por ex: boanerges 3,17; talita cumi 5, 41; efeta 7, 34; aba 14,36; eloi, eloi l5, 34 ). Mostra ainda resquícios de uma tradição oral. Diz uma tradição antiga que Marcos escreveu o Evangelho com base na pregação de Pedro. Ele próprio deve ter testemunhado alguns dos fatos narrados. Há um fundamento para esta tradição no próprio evangelho (14,51) que embora não seja prova apodítica, é no mínimo uma grande coincidencia. Há indícios de que tenha sido escrito em Roma. Baseia-se isso sobretudo naquela famosa questão acerca do divórcio (10, 1-12), que era um problema para os romanos naquela época. Há ainda o uso de palavras latinas como 'kenturiôn' para dizer ’centurião’, apenas escrevendo a pronúncia da palavra latina em grego, ao invés de em vez de 'acatoûtarkos', a palavra grega correspondente. Em 12,41 (oferta da viúva), explica o nome da moeda, ao que ela correspondia em latim, para ser entendido pelos romanos. Explica também o nome da sala em que JC foi julgado, isto é, 'pretorion'. O final do escrito provavelmente não é do próprio Marcos, mas talvez acréscimo posterior de algum discípulo dele.
3. OBJETIVO DOUTRINÁRIO
Teologicamente, o evangelho de Marcos quer mostrar que JC é o Messias esperado e prometido. Usa os mesmos títulos messiânicos que eram com frequência usados pelo povo. O ponto culminante do seu evangelho é a confissão de Pedro, em Cesaréia (8, 27-30) e a resposta de Cristo. JC não declarara antes ser o Messias, por causa do falso conceito de Messias que o povo tinha, o libertador temporal. Tanto assim que na ocasião em que após um milagre a multidão quis aclamá-lo, ele fugiu. Alguns autores dizem que Marcos usou este "segredo messianico" para evitar explicações embaraçosas pelo fato de que Cristo, que devia ser o libertador, tinha morrido da maneira que morreu. A história da paixão é apresentada como uma vitória, um fracasso apenas aparente.
4. CRONOLOGIA
Foi o primeiro evangelho a ser escrito. O tempo em que foi escrito não está muito longe da destruição de Jerusalém, que ocorreu em 70 d.C. Apresenta pouca evolução da doutrina cristã e contém pouca reflexão teológica. Deve ter sido escrito entre os anos 60 e 70, mais próximo de 70. É provável que Marcos tenha sido contemporâneo dos acontecimentos da paixão e morte de Cristo.


O NOVO TESTAMENTO (4)
EVANGELHO SEGUNDO LUCAS
1. PERFIL DO AUTOR
Segundo antiga tradição, este Evangelho foi escrito por Lucas, um médico de Antioquia. Ele não foi discípulo de Cristo, deduz-se isto logo no início, pois se coloca fora das testemunhas oculares. Ele teria se encontrado com S. Paulo, em Antioquia. Nos Atos, ele fala muito de Antioquia, sua terra. Paulo fala dele em suas epístolas (Col. 4,14), (Fil, 24) (II Tim 4, 11). É um bom escritor, vê-se pelo estilo do grego usado no prólogo, considerado um clássico da época. O próprio costume de escrever prólogos, dedicando o livro era costume entre os grandes escritores. Corrige muito o estilo do grego de Marcos, substituindo termos vulgares por palavras mais eruditas. Foi um homem culto. À vista dos acontecimentos da época, procurou relacionar os acontecimentos narrados com fatos conhecidos da história, com detalhes cronológicos.
2. COMPOSIÇÃO LITERÁRIA
Alguns estudiosos procuram ver no seu Evangelho um certo "olho clínico", por ser ele um médico. Vê-se isto, por exemplo, nos episódios da sogra de Pedro, do Samaritano, da hemorroíssa. Enquanto no evangelho de Marcos, ele fala 'que há 18 anos esta mulher sofria deste mal e tinha gasto tudo com os médicos...', Lucas omite este detalhe, certamente defendendo a classe médica. No prólogo, ele se propõe a escrever um evangelho completo desde o início. Utilizou como fontes o evangelho de Marcos, a fonte Q, além de outras fontes particulares da região onde viveu.
3. OBJETIVO DOUTRINÁRIO
A característica teológica deste evangelho é o Messias dos pobres, humildes, desprezados, doentes e pecadores. Exemplos: em 19, 10, fala em salvar o que estava perdido; em 7, 36-50, traz o relato da pecadora que banhou os pés de Cristo; em 15, 1-32, fala da ovelha perdida, dracma perdida, filho pródigo; em 10, 9-14, fala do publicado e o fariseu; em 16, 19-31, fala do rico avarento e do pobre lázaro; em 11, 41; 12, 33; 14,13; refere-se a esmolas. Nota-se ainda uma preocupação de Lucas pelo conceito da mulher, valorizando a atuação delas, tendo em vista a situação destas naquela sociedade. Refere-se a Ana, Isabel, as mulheres que acompanhavam os Apóstolos, Maria e Marta de Betânia, a viúva de Naim; a mulher da multidão, que exaltou a mãe de Cristo...E num lugar todo especial está Maria, Mãe de Jesus. Dá tantos detalhes da vida familiar da Sagrada Familia que muitas vezes se pensou que ele a tivesse entrevistado antes de escrever. Corrige certas referências extraordinárias a respeito de JC que pudessem escandalizar os não judeus (multiplicação dos pães, sogra de Pedro, discussão no caminho... ). Faz a genealogia de Cristo diferente de Mateus, começando por Adão.
4. CRONOLOGIA
O tempo em que foi escrito situa-se entre 70 e 80 d.C.


O NOVO TESTAMENTO (5)

EXPLICAÇÃO DE ALGUMAS PARÁBOLAS
Obs: Sugere-se a leitura prévia dos textos indicados, a fim de ser melhor compreendida a explicação.

1. A parábola da pecadora (Lc 7,36-50).
Esta parábola é dirigida aos fariseus, na pessoa de Simão. E ainda na pessoa deste, a todas as pessoas maliciosas. Qual a compreensão desta parábola (isto é, o seu sentido)? Conclui-se pela pergunta feita a Simão: "Qual deles mais o amará?" e a resposta: "A quem mais foi perdoado". Ou seja, o perdão precede o amor. Outras parábolas deste mesmo grupo, com a mesma lição: a Samaritana, a Mulher adúltera, Zaqueu, os trabalhadores da vinha, publicano e o fariseu).
2. O Fariseu e o Publicano (Lc 18, 9-l4)
Hoje a história narrada nesta parábola já perdeu mais a sua força. Mas era um escândalo naquela época, pois o tipo de oração que todo fariseu fazia era aquele. O caso do jejum, por exemplo, só era obrigatório uma vez por ano, mas o fariseu fazia com maior frequência; o dízimo era pago pelo produtor e não pelo comprador; todavia, o fariseu tinha escrúpulo de que o vendedor não tivesse pago, e na dúvida, pagava por ele. A oração do publicano era pobre e sem sentido para o judeu, no entanto foi a que mais agradou a Deus. Isto era um verdadeiro contrasenso para eles. O ensinamento, pois, aqui é o seguinte: Deus ajuda a quem tem mais necessidade e é humilde, tem consciência disso. O reino do céus é para os que precisam, não para os que são autosuficientes e acham que já têm tudo.
3. Zaqueu (Lc 19, 1-10)
Para entender esta parábola, é necessário saber que perante os judeus, havia duas classes de pecadores: a) pecadores morais - aqueles desobedientes da lei, os transgressores da lei; b) pecadores por condição - aqueles que exerciam profissões coonsideradas impuras, como a de pastor, publicano, cobrador, que eram ipso facto considerados pecadores. Estes não eram admitidos como testemunhas na justiça nem exerciam os cargos políticos. O fato de JC ir à casa de Zaqueu é uma atitude contra este preconceito. O próprio Zaqueu admirou-se disso.
4. Filho pródigo (Lc 15, 11-32)
O filho que se revoltou contra o irmão irresponsável era o retrato dos fariseus. Eles se julgavam merecedores de todos os favores divinos, porque se consideravam justos e bons, sempre obedeciam a lei. O pródigo era o caso dos publicanos, os cobradores, os que eram considerados deserdados por Deus. Esta parábola é dirigida contra aqueles que se acham merecedores das bênçãos e desprezam os outros, por achar que eles não merecem. Assim neste mesmo sentido são as parábolas da ovelha perdida (Lc 15, 4-7) e da dracma perdida (Lc 15, 8-10) e a da grande ceia (Lc 14, 16-24).
5. Parábola da Vinha (Mt 20,1-16)
Os fariseus, simbolizados pelos que trabalhavam na vinha desde o começo do dia, achavam que deviam receber uma recompensa maior de Deus do que os publicanos, representados pelos que tinham começado a trabalhar nas últimas horas do dia. Mas a recompensa fora igual para todos. Os fariseus se revoltaram, porque se consideravam os únicos merecedores.
Podemos notar que todas estas parábolas formam um grupo que contém uma mensagem no mesmo sentido: todas têm como ensinamento central "Cristo, salvador dos pecadores".
Temos outro grupo de parábolas, estas referentes ao Reino de Deus.
1. Parábola do Grão de Mostarda (Mt 13, 31-32 )
A finalidade desta parábola é mostrar através de uma comparação que acontece com o reino de Deus o mesmo que acontece com a semente plantada. É algo que teve um inicio tão pequeno, tão humilde, mas será mais tarde uma apoteose. O importante na parábola é mostrar o contraste entre o início e o fim do processo. O modo como Cristo apresenta isto para os judeus é o mesmo usado desde antes, quando sempre a imagem de uma grande árvore significa um grande Reino. As aves de que fala o evangelista não teriam sentido para os judeus. Mas para os pagãos já transmitem um significado de segurança, por isso são acrescentadas por Mateus, que escrevia para povos não judeus.
2. Parábola do fermento (Mt 13, 33)
Outra parábola deste grupo é a do fermento na massa. O fermento é em si uma coisa má, que corrompe a massa, mas JC dá um sentido novo de favorecer o crescimento da massa, para melhorar a qualidade do pão.
Este outro grupo de parábolas mostra a evolução do reino de Deus, comparando com alguns fenômenos naturais, a fim de tornar este ensinamento mais didático para o povo. Este era, aliás, o objetivo geral de todas as parábolas.