terça-feira, 19 de maio de 2009

Fenômeno Religioso

RELIGIÃO
EM BUSCA DA TRANSCENDÊNCIA
O QUE É RELIGIÃO?
QUAL A DIFERENÇA DE SEITA?
MITOLOGIA É RELIGIÃO?
O QUE É HERESIA?


RELIGIÃO deriva do termo latino "Re-Ligare", que significa "religação" com o divino. Essa definição engloba necessariamente qualquer forma de aspecto místico e religioso, abrangendo seitas, mitologias e quaisquer outras doutrinas ou formas de pensamento que tenham como característica fundamental um conteúdo Metafísico, ou seja, de além do mundo físico.

Sendo assim o hábito, geralmente por parte de grupos religiosos de taxarem tal ou qual grupo religioso rival de seita, não têm apoio na definição do termo. SEITA, derivado da palavra latina "Secta", nada mais é do que um segmento minoritário que se diferencia das crenças majoritárias, mas como tal também é religião.

HERESIA é outro termo mal compreendido. Significa simplesmente um conteúdo que vai contra a estrutura teórica de uma religião dominante. Sendo assim o Cristianismo foi uma Heresia Judáica assim como o Protestantismo uma Heresia Católica, ou o Budismo uma Heresia Hinduísta.

A MITOLOGIA é uma coleção de contos e lendas com uma concepção mística em comum, sendo parte integrante da maioria das religiões, mas suas formas variam grandemente dependendo da estrutura fundamental da crença religiosa. Não há religião sem mitos, mas podem existir mitos que não participem de uma religião.

MÍSTICA pode ser entendida como qualquer coisa que diga respeito a um plano sobre material. Um "Mistério".

PRESENÇA DA RELIGIÃO EM TODA A CULTURA HUMANA
Não há registro em qualquer estudo por parte da História, Antropologia, Sociologia ou qualquer outra "ciência" social, de um grupamento humano em qualquer época que não tenha professado algum tipo de crença religiosa. As religiões são então um fenômeno inerente a cultura humana, assim como as artes e técnicas.
Grande parte de todos os movimentos humanos significativos tiveram a religião como impulsor, diversas guerras, geralmente as mais terríveis, tiveram legitimação religiosa, estruturas sociais foram definidas com base em religiões e grande parte do conhecimento científico, "filosófico" e artístico tiveram como vetores os grupos religiosos, que durante a maior parte da história da humanidade estiveram vinculados ao poder político e social.
Hoje em dia, apesar de todo o avanço científico, o fenômeno religioso sobrevive e cresce, desafiando previsões que anteveram seu fim. A grande maioria da humanidade professa alguma crença religiosa direta ou indiretamente e a Religião continua a promover diversos movimentos humanos, e mantendo estatutos políticos e sociais.
Tal como a Ciência, a Arte e a Filosofia, a Religião é parte integrante e inseparável da cultura humana, é muito provavelmente sempre continuará sendo.

TIPOS DE RELIGIÕES
Há várias formas de religião, e são muitos os modos que vários estudiosos utilizam para classificá-las. Porém há características comuns às religiões que aparecem com maior ou menor destaque em praticamente todas as divisões.
A primeira destas características e cronológica, pois as formas religiosas predominantes evoluem através dos tempos nos sucessivos estágios culturais de qualquer sociedade.
Outro modo é classificá-las de acordo com sua solidez de princípios e sua profundidade filosófica, o que irá separá-las em religiões com e sem Livros Sagrados.Pessoalmente como um estudioso do assunto, prefiro uma classificação que leva em conta essas duas características, e divide as religiões nos seguintes 4 grandes grupos distintos.

PANTEÍSTAS
POLITEÍSTAS
MONOTEÍSTAS
ATEÍSTAS

Nessa divisão há uma ordem cronológica. As Religiões PANTEÍSTAS são as mais antigas, dominando em sociedades menores e mais "primitivas". Tanto nos primórdios da civilização mesopotâmica, européia e asiática, quanto nas culturas das Américas, África e Oceania.

As Religiões POLITEÍSTAS por vezes se confundem com as Panteístas, mas surgem num estágio posterior do desenvolvimento de uma cultura. Quanto mais a sociedade se torna complexa, mais o Panteísmo vai se tornando Politeísmo.

Já as MONOTEÍSTAS são mais recentes, e atualmente as mais disseminadas, o Monoteísmo quantitativamente ainda domina mais de metade da humanidade.

E embora possa parecer estranho, existem religiões ATEÍSTAS, que negam a existência de um ser supremo central, embora possam admitir a existência de entidades espirituais diversas. Essas religiões geralmente surgem como um reação a um sistema religioso Monoteísta ou pelo menos Politeísta, e em muitos aspectos se confunde com o Panteísmo embora possua características exclusivas.
Essa divisão também traça uma hierarquia de rebuscamento filosófico nas religiões. As Panteístas por serem as mais antigas, não têm Livros Sagrados ou qualquer estabelecimento mais sólido do que a tradição oral, embora na atualidade o renascimento panteísta esteja mudando isso. Já as politeístas muitas vezes possuem registros de suas lendas e mitos em versão escrita, mas Nenhuma possui uma REVELAÇÃO propriamente dita. Isto é um privilégio do Monoteísmo. TODAS as grandes religiões monoteístas possuem sua Revelação Divina em forma de Livro Sagrado. As Ateístas também possuem seus livros guias, mas por não acreditarem num Deus pessoal, não tem o peso dogmático de uma revelação divina, sendo vistas em geral como tratados filosóficos.

PANTEÍSMO

As religiões primitivas são PANTEÍSTAS, acredita-se num grande "Deus-Natureza". Todos os elementos naturais são divinizados, se atribuí "inteligências" espirituais ao vento, a água, fogo, populações animais e etc.
Há uma clara noção de equilíbrio ecossistêmico, onde é comum ritos de agradecimento pelas dádivas naturais e pedidos às divindades da natureza, em alguns casos requisitando autorização mesmo para o consumo da caça que embora tenha sido obtida pelo esforço humano, seria na verdade permitida, se não ofertada, pelos entes espirituais.
A relação de dependência do ser humano com o ecossistema é clara, assim como a de parentesco e de submissão. As entidades elementais da natureza estão presentes em toda a parte, conferindo a onisciência do espírito divino. Embora haja a tendência da predominância de um presença mística feminina, a "mãe-terra", o elemento masculino também é notável a partir do momento que os seres humanos passam a compreender o papel do macho na reprodução. Ocorre então a presença de dois elementos divinos básicos, o Feminino e Masculino universal.
É um domínio de pensamento transcendente, mais compatível com a subjetividade e a síntese, não sendo então casual que este seja o tipo religioso onde as mulheres mais tenham influência. A presença de sacerdotisas, bruxas e feiticeiras é em muitos casos, muito mais significativa que a de seus equivalentes masculinos.
Todas essas religiões são ágrafas, sem escrita, com exceção é claro dos NeoPanteísmos contemporâneos. Portanto são as mais envoltas em obscuridade e mistérios, não tendo deixado nenhum registro além da tradição oral e de vestígios arqueológicos.

POLITEÍSMO

Com o tempo e o desenvolvimento as necessidades humanas passam a se tornar mais complexas. A sobrevivência assume contornos mais específicos, o crescimento populacional hipertrofiado graças a tecnologia que garante maior sucesso na preservação da prole e da longevidade, gera uma série de atividades competitivas e estruturalistas nas sociedades, que se tornam cada vez mais estratificadas.
Nesse meio tempo a influência racional em franca ascensão tenta decifrar as transcendentes essências espirituais da natureza. Surge então o POLITEÍSMO, onde os elementos divinos são então personificados com qualidades cada vez mais humanas. O que era antes apenas a Água, um ser de essência espiritual metafísica e sagrada, agora passa a ser representada por uma entidade antropomórfica ou zoomórfica relacionada a água.
No princípio as características dessas divindades não são muito afetadas, mas com o tempo, a imaginação humana ou a tentativa de se adequar as religiões às estruturas sociais, elas ficam cada vez mais parecidas com os seres humanos comuns, surgindo então entre os deuses relacionamentos similares aos humanos inclusive com conflitos, ciúmes, traições, romances e etc. E cada vez mais os deuses perdem características transcendentes até que a "degeneração" chegue a ponto destes se relacionarem sexualmente com seres humanos, o que significa a perda da natureza metafísica, da característica invisível, ou mais, de haver relações físicas e pessoais de violência entre humanos e divindades, sem qualquer caráter transcendente.
Em muitos casos é difícil distinguir com clareza se determinadas religiões são Pan ou Politeístas. Mesmo no estágio Panteísta por vezes pode-se identificar com muita evidência algumas personificações das entidades divinas, mas algumas características como as citadas no parágrafo anterior são exclusivas do politeísmo. É possível que os elementos que contribuam ou realizem essa transição sejam o Animismo, Fetichismo e Totemismo.
Ocorre também uma relativa equivalência entre deidades femininas e masculinas, embora as masculinas mostrem sinais de predominância a medida que o sistema de crenças se torne mais mundano, características de uma fase mais racional e técnica onde muitas vezes a religião politeísta caminha junto com filosofias da natureza.
É sempre nesse estágio também que as sociedades desenvolvem escrita, ou pelo menos passa a utilizar símbolos abstratos e códigos visuais mais elaborados, no caso do politeísmo asiático, egípcio e europeu por exemplo, evoluiu para um sistema de escrita complexo.
Muitas destas religiões têm então, narrativas de seus mitos em forma escrita, mas tais não possuem o valor e a significância de uma Revelação propriamente dita.
Num estágio final tende a ocorrer o fenômeno da Monolatria, onde a adoração se concentra numa única divindade, o que pode ser o ponto de partida para o Monoteísmo.

MONOTEÍSMO

Chega um momento onde o Politeísmo está tão confuso, que parece forçar o "inconsciente coletivo", ou a "intuição global" a buscar uma nova forma de crença. Alguém precisa pôr ordem na casa, surge então um poderoso Deus que acaba com a confusão e se proclama como o Único soberano. Acabam-se as adorações isoladas e hierarquiza-se rigidamente as deidades, de modo a se submeter toda a autoridade do universo a um ente máximo.

O MONOTEÍSMO não é a crença em uma única divindade, mas sim a soberania absoluta de uma. A própria teologia judáico-cristã-islâmica adota hierarquias angélicas que são inclusive encarregadas de reger elementos específicos da natureza.

Um elemento que caracteriza mais claramente o MONOTEÍSMO mais específico, Zoroastrista, Judáico, Cristão, Islâmico e Sikh, é antes de tudo a ausência ou escassez de representações icônicas do Deus supremo, e sua desatribuição parcial de qualidades humanas, nem sempre bem sucedida. Já as entidades secundárias são comumente retratadas artisticamente.
A própria mitologia grega através da Monolatria, já estaria a dar sinais de se dirigir a um monoteísmo similar ao que chegou a religião Hindu, ou a egípcia com a instituição do deus único Akhenaton, embora ainda impregnadas fortemente de Politeísmo a até de reminiscências Panteístas no caso do Bhramanismo. Zeus assomava-se cada vez mais como o regente absoluto do universo. Entretanto um certo obstáculo teológico impedia que tal mitologia atingisse um estágio sequer semi-Monoteísta. Zeus é filho de Chronos, neto de Urano, essa descendência evidencia sua natureza subordinada ao tempo, ele não é eterno ou sequer o princípio em si próprio, que é uma característica obrigatória de um Deus Uno e absoluto como Bhraman ou Javé.
Um fator complicador é que todas essas religiões apesar de seu princípio Uno, são também Dualistas, pois contrapõem um deus do Bem contra um do Mal. Entretanto não se presta "Sob Hipótese Alguma!", qualquer culto ao deus maligno, como ocorre nas Politeístas. Saber se o deus maligno está ou não sujeito afinal ao deus supremo é uma discussão que vem rendendo há mais de 3.000 anos.
Diferente do estado Panteísta original não ocorre harmonia entre os opostos, e um deles passa a ser privilegiado em detrimento do outro. Sendo assim onde antes ocorria a divinização dos aspectos Masculinos e Femininos do Universo, e a sacralidade da união, aqui ocorre a associação de um com o maligno, fatalmente do elemento Feminino uma vez que todas as religiões monoteístas surgiram na fase patriarcal da humanidade.
O Bhramanismo sendo o mais antigo, ainda conserva qualidades tais como veneração a manifestações femininas da divindade, não condena a relação sexual e ainda detém a crença reencarnacionista que é uma quase constante no Panteísmo. Do Politeísmo guarda toda um miríade de deuses personificados, com estórias bastante humanas que envolvem conflitos e paixões. Mas a subordinação a um Uno supremo, no caso representado pela trindade Bhrama-Vinshu-Shiva, é clara. O panteão anterior Hindu foi completamente absorvido pelo monoteísmo Bhraman, e conservou até mesmo a deusa Aditi, que outrora fora a divindade suprema.
Já os monoteísmos posteriores, mais afastados do fenômeno panteísta, entram em choque mais evidente com o Politeísmo que geralmente está em estado caótico. Ocorre um abafamento da religião anterior pela nova e seu caráter patriarcal e associado a violência, especialmente a partir do Judaísmo, se impõe de forma opressiva. As divindades femininas são erradicadas ou demonizadas, sendo então obrigatoriamente associadas ao elemento maligno do universo. Esse fenômeno acompanha a queda da condição social feminina na sociedade.
Embora as teologias monoteístas, especialmente na atualidade, se esforcem para afirmar o contrário, o deus único Hebreu, Cristão e Islâmico, basicamente o mesmo, assim como o do anterior Zoroastrismo e posterior Sikhismo, são nitidamente masculinos, aparentemente renegando o aspecto feminino divino do universo, mas na verdade o absorvendo, uma vez que ao contrário de deuses "supremos" Politeístas como Zeus, Osíris e Odin, eles são carregados de atribuições de amor e compaixão, embora ainda conservem sua Ira divina e seus atributos violentos, o que resulta em entidades complexas, que possuem aspectos paternos e maternos simultâneamente.
Tal como a própria emocionalidade, esse é o período mais contraditório da evolução do pensamento Teológico. Apesar de estar sob o domínio de uma característica de predominância subjetiva, é o momento onde as sociedades se mostraram paradoxalmente mais androcráticas. Os elementos femininos são absorvidos pelo Deus Único dando a ele o poder de atrair e seduzir as massas pela sua bondade, mostrando sua face benevolente, mas por outro lado a espada da masculinidade está sempre pronta a desferir o golpe fatal em quem se opuser a sua soberania.
Tal união, confere aos deuses monoteístas um poder supremo inigualável, e tal contradição, tal desarmonia intrínseca, resultou não por acaso no período religiosamente mais violento da história. As religiões monoteístas, especialmente o trio Judaísmo-Cristianismo-Islamismo, são as mais intolerantes e sanguinárias da história.

ATEÍSMO

As religiões aqui caracterizadas como Ateístas negam simplesmente a existência de um Ser Supremo central, que tudo tenha criado e a tudo controle, e talvez seja nesse grupo que se sinta mais radicalmente a ruptura entre Ocidente e Oriente, mas basicamente o Ateísmo religioso tende a funcionar da seguinte forma.

Se o Monoteísmo tenta acabar com o "pandemonium" Politeísta e estabelecer uma nova ordem por algum tempo, acaba por também se mundanizar. As autoridades religiosas interferindo fortemente na política e na estruturação social, enfraquecem como símbolos transcendentes. A inflexibilidade fundamentalista do sistema se revela injustificável ante a problemática social e as conquistas e descobertas filosóficas e científicas e num dado momento o sentimento de descrença é tal que deixa-se de acreditar num deus. Surge o ATEÍSMO.

Esse é o ponto crucial, a razão pela qual de fato não acredito que existam Ateus no sentido mais profundo do termo, no máximo "agnósticos".
Geralmente o ateu não é aquele que desacredita do "invisível", de qualquer forma de Téos, mas sim o que descrê dos deuses personificados e corrompidos. Afinal até o mais materialista e cético dos cientistas trabalha com forças invisíveis! Fenômenos da natureza ainda inexplicáveis.
Gravitação Universal, Lei de Entropia, Mecânica Quântica e etc. não podem ser vistas! Apenas seus efeitos. Tal como sempre se alegou com relação aos deuses.

No que se refere a uma visão do Princípio, não creio fazer diferença acreditar que um corpo é atraído para o centro da Terra por uma força invisível da natureza ou pela vontade de um deus também invisível. Há apenas uma maior compreensão racional do fenômeno, com maiores resultado práticos, mas de um modo ou de outro, a explicação possui um certo caráter de fé, tão racionalmente satisfatório para o cientista quanto para o religioso, capaz de explicar com clareza o funcionamento do mundo e mesmo quando isso não ocorre, admiti-se como mistérios divinos, ou causas científicas ainda desconhecidas.

No caso do Oriente, o Ateísmo religioso surge principalmente na Índia, sob a forma do Budismo e do Jainísmo, e na China, sob o Taoísmo e o Confucionismo. Todas essas religiões possuem textos base com certo grau de respeitabilidade mística ou filosófica, mas o grau de liberdade com que se pode reinterpretar ou mesmo discordar destes textos é incomparável em relação aos livros sagrados Monoteístas.

E nesse nível que muitas posturas passam a ser desconsideradas como religiões, sendo tidas em geral como filosofias. No Ocidente, tal movimento ocorreu também na Grécia Antiga, através de Filósofos da Natureza que estabeleciam como princípio primário universal alguma "substância" completamente impessoal. Mais especificamente, Aristóteles colocava o MOTOR IMÓVEL como o princípio primário, e PLOTINO, estabelecia o UNO. Porém essa breve ascensão do Ateísmo filosófico e científico ocidental foi logo minada pelo sucesso do Monoteísmo cristão.
O Ateísmo no Ocidente só surgiu novamente após a renascença, no Iluminismo, onde outras formas filosóficas se desenvolveram, mas a mistura destas com os Neo Panteísmos e o avanço científico em geral resulta num quadro difícil de se diferenciar.
Mas o ponto mais complexo na verdade, e que Ateísmo e Panteísmo se confundem.

Religiões ATEÍSTAS e NEO-PANTEÍSTAS

As religiões Ateístas não crêem numa entidade suprema central, mas pregam a interdependência harmônica do Universo, da mesma forma que o Panteísmo.
Pregam a harmonia dos opostos como Yin e Yang, da mesma forma que a harmonia entre a Deusa e o Deus no Panteísmo, e constantemente adotam um posição de neutralidade em relação aos eventos.
Provavelmente não por acaso TAOÍSMO e BUDISMO são as mais avançadas das grandes religiões num sentido metafísico, racional e mesmo científico. São imunes a contestação racional pois seus conceitos trabalham num plano mais abstrato mas ao mesmo tempo capaz de explicar a realidade, e fartos de paradoxos escapistas, sendo extremamente mais flexíveis que as religiões monoteístas por exemplo. Não há casos significativos de atrocidades cometidas em nome destas religiões em larga escala como as monoteístas ou nas politeístas monolátricas.
Porém, barreiras intransponíveis impedem que essas religiões sejam nesse esquema de divisão, classificadas como Panteístas. TAOÍSMO e CONFUCIONISMO que são chinesas equanto o BUDISMO e o JAINISMO Indianos, são religiões letradas. Possuem seus escritos fundamentais como os Sutras Budistas, o Tao Te-King Taoísta e os Anacletos Confucianos e os textos dos Tirthankaras Jainistas. Todas possuem seus mentores, Buda, Lao-Tsé, Confúcio e Mahavira. E todas são muito desenvolvidas filosoficamente, por vezes sendo consideradas não religiões, mas filosofia. Todas essas características inexistem no Panteísmo primitivo.
Portanto isso me leva a classificá-las como RELIGIÕES ATEÍSTAS, por declararem a inexistência de um Ser Supremo. Pelo contrário, o TAO ou o NIRVANA, o centro de todo o Universo segundo o Taoísmo e Confucionismo, e o Budismo, são uma espécie de Vazio, um Não-Ser.
Já o Neo-Panteísmo possui sim seus textos. É o caso do Espiritismo Kardecista, do Bahaísmo, do Racionalismo Cristão e etc. Embora muitos insistam em negar-se como Panteístas se inclinando para o Monoteísmo, porém uma série de fatores a distanciam muito deste grupo. Tais como: A ênfase atenuada dada ao livro base da doutrina, que embora seja uma revelação, não tem o mesmo peso dogmático e em geral se apresenta de forma predominantemente racional. A postura passiva e não proselitista, e muito menos violenta, do Monoteísmo tradicional. A caraterização de seu fundador que mesmo sendo dotado de dons supra-naturais, não reivindica deificação e nem mesmo reverência especial. E o mais importante, diferenciando-as principalmente do Monoteísmo "Ocidental", o tratamento totalmente diferenciado dado a questão da existência do "Mal".

O FATO RELIGIOSO

Quando perguntamos a um grupo de pessoas qual a religião de cada uma, podemos ouvir as mais diferentes respostas. Algumas vão dizer que são católicas. Outras, que são crentes. Outras, ainda, que são presbiterianas, evangélicas, mórmos... Ou, então, que praticam uma religião própria. Que conversam diretamente com Deus, sem necessidade de freqüentar igrejas ou de repetir orações. Outras vão demonstrar uma bruta surpresa com a ousadia da pergunta: Religião? Eu?! Ta me estranhando?

Estas últimas parecem ser as mais sintonizadas com os tempos, pois constantemente se diz e se escreve que a ciência já provou as grandes verdades da vida, que o mundo atual não precisa de Deus.

Ao mesmo tempo, diariamente entramos em contato direto com as mais diferentes manifestações religiosas. Nas ruas, nas portas das casas, somos convidados, seja através de folhetos seja através de pessoas que tentam nos convencer das verdades de sua crença, a participar de diferentes tipos de culto. Pelos jornais e TV, acompanhamos guerras entre povos, que tentam destruir-se mutuamente. Às vezes, o problema é colocado em termos de conflito entre adeptos de diferentes religiões, como no caso dos muçulmanos e dos cristãos na Bósnia, dos protestantes e católicos na Irlanda do Norte...

Na escola, podemos ficar surpresos ao saber que um colega, que vivia para festas e namoros, converteu-se a uma religião muito rígida, que não permite nem umas e nem outros.
Nem mesmo admite que se tenha amizade com pessoas do outro sexo ou com quem não pertença ao mesmo grupo religioso.
Para complicar ainda mais, uma colega aparece com um livro sobre horóscopo, ou sobre que oferendas fazer a gnomos e bruxas, ou sobre a utilização dos cristais na meditação...



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Será que tudo isso é religião, ou que religião é apenas isso?


1. O SER HUMANO E SUAS QUESTÕES FUNDAMENTAIS

Quem já observou, numa praia deserta, a irrupção de dezenas de tartaruguinhas recém-saídas do ovo, sabe que elas imediatamente procuram a água. Sem qualquer apoio ou assistência, elas buscam alimento, desenvolvem-se e, no tempo marcado pela natureza, acasalam-se e as fêmeas, por sua vez, dirigem-se a uma praia deserta, a fim de por seus ovos em segurança.

Com o ser humano acontece algo diferente. O recém nascido humano é talvez o ser mais indefeso da natureza. Precisa de cuidados especiais para sobreviver. Apesar das lendas de seres humanos amamentados por animais, como Rômulo e Remo, criados por uma loba, e, na literatura moderna, Tarzan dos macacos, é na relação com os outros seres da sua espécie que o humano pode se desenvolver.

Um dos aspectos mais distintivos desse ser, é a capacidade de perceber a si mesmo e a própria finitude – de tomar consciência de que vai seguir inexoravelmente o destino de todos os seres da natureza: crescer, amadurecer e morrer.

A consciência de si mesmo e do mundo possibilita também a percepção do sofrimento. Quem nunca teve um momento de desânimo ou de desespero diante de problemas ou doença? Conflitos na família, impossibilidade de satisfazer anseios, injustiças sofridas, a perspectiva da morte, fim de namoro... Nessas horas, quando o sofrimento parece maior do que a capacidade de suporta-lo, as pessoas costumam perguntar a si mesmas: Qual o sentido da vida? Para que nascer? Por que morrer? São momentos importantes de reflexão e amadurecimento.

As questões sobre o sentido da vida (de onde viemos, o que fazemos e para onde iremos?) e a certeza de que é impossível eliminar a morte estão na raiz do sentimento religioso e da crença na existência de um ser superior, com o qual o humano estabelece uma relação muito especial. Esse ser superior, de natureza divina, que transcende a vida neste mundo é, nas religiões, chamado Deus.


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Algumas perguntas estão na raiz do fato religioso. Para nós, quais são essas perguntas?


AS DESCOBERTAS DA CIÊNCIA COM RELAÇÃO À RELIGIÃO


O INTERESSE PELAS RELIGIÕES É MUITO ANTIGO. JÁ Heródoto, no século IX a.C., preocupava-se em descrever as religiões de seu tempo e os pensadores pré-socrático (século VI a.C.) interessavam-se pelo valor dos mitos e a natureza dos deuses. Mas a ciência das religiões, propriamente dita, iniciou-se com Max Mueller, no século passado.

Diferentes ramos da ciência contribuem para a das religiões. A teologia, a antropologia, a sociologia da religião, a psicologia, a fenomenologia religiosa, a história, a filosofia... Não existe ciência humana que não se ocupe de alguma forma do fato religioso. Estas ciências nos ajudam a adquirir um critério claro para distinguir as diversas manifestações religiosas, como a magia, a superstição, o ocultismo, os fenômenos parapsicológicos etc.

Uma conclusão fundamental desses estudos é que não existe, nem existiu, cultura humana, em qualquer época ou lugar do mundo, que não tenha ou tivesse manifestações de uma religião. Isto é, o fato religioso é universal, tão amplo e diversificado quanto a própria humanidade. Está e sempre esteve em todas as culturas, em todos os tempos. Mesmo em túmulos pré-históricos foram encontrados vestígios de ritos funerários, que atestam a crença numa vida depois da morte.




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O fato religioso é universal. Isto é, não existe nem existiu povo que não tivesse algum tipo de manifestação religiosa.
Indique alguns sinais da presença do fato religioso em sua cidade.
Compare o número de festas religiosas com o das festas civis durante o ano.____________________________________________________________________

TODAS AS CULTURAS PRIMITIVAS MANIFESTARAM A INQUIETAÇÃO HUMANA DE SE REFERIR A ALGUÉM VENERADO COMO SAGRADO E DO QUAL ESPERAM RESPOSTA DEFINITIVA PARA SUAS PERGUNTAS SOBRE O SENTIDO DA EXISTENCIA.

INÚMEROS INDÍCIOS O ATESTAM: SEPULTURAS, PINTURAS RUPRESTES, MONUMENTOS MEGALÍTICOS, RITOS FUNERÁRIOS, RITOS DE INICIAÇÃO, MITOS CÓSMICOS, DANÇAS SAGRADAS, OFERENDAS E SACRIFICIOS, BANQUETES SAGRADOS COLETIVOS, FÓRMULAS MÁGICAS, PRECEITOS MORAIS... Todos estes signos testemunham múltiplas crenças que convergem para certas preocupações comuns: A ORIGEM DO MUNDO E DO SER HUMANO, A EXISTENCIA DE PODERES SUPERIORES, O SENTIDO INATO DO SAGRADO NO SER HUMANO, A VIDA DEPOIS DA MORTE... SÃO MAIFESTAÇÕES A PRINCÍPIO MUITO ARCAICAS, POUCO EVOLUÍDAS, MAS CADA VEZ MAIS CONCRETAS E DELIMITADAS NA MEDIDA EM QUE PROGRIDE A HISTÓRIA HUMANA.



Hacia Um Humanismo Cristiano, Margarita Díez Cuesta E Outros, Edelvives, Zaragoza, 1986, P. 63.


A PALAVRA RELIGIÃO

A palavra RELIGIÃO vem do latim “religio”, que pode ter pelo menos dois significados diferentes:
Um dos significados foi dado por Cícero, escritor romano que viveu quase um século antes de Cristo. Para ele, “religiosi”, de relegere, eram aqueles que seguiam com cuidado os costumes dos ancestrais no que se referia ao culto dos deuses. A religião, portanto, era um conjunto de crenças e práticas tradicionais próprias de uma sociedade humana particular, que assim honrava seus deuses. Nesse sentido, religio podia cobrir realidades religiosas bastante diferentes. Esse conceito nada tinha de exclusivo e colocava o acento no ritual, na exterioridade.

Não se pode esquecer que Cícero viveu no mundo romano, no qual os imperadores eram considerados deuses – e a realização cuidadosa das cerimônias de um culto aos deuses vivos e poderosos podia evitar sérios problemas ao cidadão.

Lactâncio, um escritor cristão que viveu no século IV, com a intenção de demonstrar que o ensinamento de Cristo constituía a única sabedoria e a única religião, afirmou, por sua vez, que religio vem de religare, que quer dizer atar, prender, ligar. Nesse sentido, religião é a “ligação pessoal que une o ser humano ao seu Criador, como a pietas romana era o laço de veneração que une o filho a seu pai” (Meslin, H. A experiência humana do divino, Vozes, 1992, p. 24s).

A partir de então, religião afirma preferentemente o sentido, o interior, o que não se pode observar.
Apesar de separadas por séculos de história e diferença de mentalidade, além de um acontecimento fundamental para os cristãos, o advento de Jesus, as duas definições podem ser consideradas complementares, pois o sentimento religioso, como qualquer outro sentimento, busca meios de expressão, traduz-se normalmente em atos. Isto é, o ser humano procura formas de externalizar e de dividir com os demais aquilo que sente. E esse sentimento se diz religioso quando reconhece uma realidade ou ser superior, a divindade, que é aceita e administrada por sua grandeza e à qual se entrega a própria vida. Uma realidade ou um ser superior (a divindade) e a aceitação por parte da pessoa dessa realidade que a supera (a atitude religiosa) são os dois elementos fundamentais do fato religioso.

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Que definição de religião encontramos hoje nos dicionários e que elementos sublinham?______________________________________________________________________


AS DIMENSÕES DO FATO RELIGIOSO

A religião é uma relação no sentido que, através dela, as pessoas procuram ligar-se ao ser transcendente, A Deus. Esta dimensão, a relação com o transcendente, é fundamental no fato religioso. Ela acontece de muitíssimos modos e constitui uma experiência que cada pessoa faz à sua maneira, em algum momento da vida. É tão íntima e tão simples essa experiência que se torna inútil querer provocá-la de fora, santo Agostinho dizia que Deus acontece no mais interior de cada pessoa.

Mas o sentimento religioso não se manifesta apenas na relação individual da pessoa com Deus. Ele se manifesta também na relação com as outras pessoas. A pessoa “religiosa” assume atitudes, comportamentos, inspirados nas suas crenças religiosas. A religião envolve, assim, manifestações coletivas como forma de partilhar o sentimento individual, e dá origem a uma ética que de alguma forma influencia e regula as relações entre os indivíduos.
Nesse sentido, o fato religioso é, também, uma compreensão do mundo, de sua origem, de sua história e sobretudo uma interpretação da pessoa e de seu destino. Essa relação ao futuro, uma utopia, ou seja, um ideal que se deseja que se torne realidade. Onde estamos, para onde vamos e como fazer (que ações) para chegar lá.

Por exemplo, alguns grupos indígenas falam na construção da terra sem males, onde as pessoas possam viver felizes, sem carências, e se realizar plenamente como seres humanos. Os cristão falam na construção do Reino de Deus, o reino da justiça, paz, igualdade e solidariedade. Estes dois exemplos de utopia talvez mostrem a diferença entre duas visões de mundo: Numa sociedade em que existe a injustiça social, o ideal utópico é uma sociedade igualitária. Para outra sociedade, para quem não existe a distribuição desigual dos bens, o ideal utópico é a existência do suficiente, sem os sofrimentos impostos pela natureza indomável.

Finalmente, a religião envolve também a relação do indivíduo consigo próprio. Isto é, as normas éticas não são apenas externas. Ao contrário, elas são internalizadas pela pessoa religiosa e passam a fazer parte da sua identidade. A pessoa religiosa forma assim uma consciência religiosa que a torna capaz de reconhecer e avaliar os próprios atos como conformes ou não às próprias crenças. Daí que se diga com freqüência que a consciência é a voz de Deus em nós. Voz de Deus que nos fala através das idéias e conceitos que recebemos da tradição cultural-religiosa em que vivemos.
Em síntese: “o fato religioso implica um fato psicológico individual, manifestações coletivas e conteúdos morais”.

Mas, mais do que isso: o religioso se apóia na experiência pessoal (“desde dentro”) e esta sempre escapa ao controle absoluto da razão. A religião dá sentido à existência do homem, dando assim a legitimação às pretensões de absoluto que definem fundamentalmente o ser humano.

A religião supõe no homem, ademais, uma abertura ao mistério, mais além das explicações que encontra na razão e na experiência sensível; e um encontro com Deus, que desemboca necessariamente num compromisso de vida, num estilo peculiar de se relacionar consigo mesmo e com o mundo. A religião não pode, pois circunscrever-se a certos momentos isolados, mas se manifesta através da vida como um todo.
Hacia um humanismo Cristiano, p.71



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O fato religioso envolve todas as dimensões da vida. Como percebemos isso no cotidiano?

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AS EXPRESSÕES RELIGIOSAS

Existem tantas expressões religiosas quantas são as culturas humanas, uma vez que cada povo busca sua própria maneira de expressar sua relação com o Transcendente.
As diferenças nos modos de expressão religiosa podem ser explicadas pelas diferenças de economia, cultura e de organização social entre as diversas sociedades humanas. O ser humano não está solto no tempo e no espaço. É um ser historicamente situado: Nasce num tempo e numa cultura determinada, cujos valores apreende através do processo de educação. Assim, o conceito de Deus e a expressão religiosa numa cultura pré-agrícola, na qual as pessoas sobrevivem da caça e da coleta de frutos e raízes, não pode ser a mesma que numa sociedade agrícola, que já aprendeu e pratica a agricultura. Esta, por sua vez, expressa-se de forma diferente de uma sociedade industrial.

Então, antes da plantação, se selecionam os grãos e se faz uma cerimônia. Durante essa cerimônia, as sementes são colocadas num mesmo lugar, entre velas acesas para a terra, a água, o sol, os animais e o universo, ou seja, para o ser humano. Na cultura indígena considera-se o universo, o ser humano. Há uma atitude de respeito para com a semente, porque ela será enterrada em algo sagrado, que é a terra, e terá que se multiplicar para trazer de novo o alimento para todos nós.


Rigoberta Menchú, em Sem Fronteiras, junho/julho 93, p.26


É principalmente através do culto que as diversas sociedades humanas manifestam a relação com o ser ou seres superior (es).

O culto envolve um rito, que compreende cerimônias, palavras, gestos, atitudes, roupas... o rito pode ser celebrado em locais especiais, ou sagrados, em presença de pessoas que organizam ou dirigem a celebração, ou em locais comuns, celebrado pelas pessoas que convivem diariamente.

Os rituais desempenham, ademais, um papel importante na formação da consciência religiosa. É através deles que se faz a “catequese” religiosa nas diversas religiões para aqueles que tem “fé”.

Como forma de expressão de um sentimento, o culto também varia de religião para religião.
Numa sociedade de classes, varia também, de classe para classe. Por exemplo, o catolicismo praticado pelas camadas populares é totalmente diferente daquele praticado pelas camadas mais cultas da população, a ponto de parecerem duas religiões diferentes.

Nem todos os ritos exigem a presença de pessoas especialmente preparadas para a sua realização, como sacerdotes ou sacerdotisas, ou padres, pastores, xamãs etc. Nos primórdios do cristianismo, o culto era realizado em casa, comandado pelo pai de família. Com a institucionalização da religião cristã, o culto foi-se modificando, passando para as igrejas e para os ritos celebrados pelos padres ou ministros.

Muitas vezes, toma-se o rito pela própria religião, isto é o extremo, o aparente é tomado pelo interno, pelo sentimento. Jesus alertou para esse risco e temos, na Parábola do Samaritano, um exemplo da religião dissociada do sentimento.

Mas os ritos mais significativos referem-se aos momentos especialmente importantes da vida em sociedade. Os ritos de iniciação, ou de passagem, representam a morte de um tipo de vida e o nascimento de uma outra, como que seguindo o ciclo do sol, que nasce, morre e renasce. A criança nasce para a comunidade cristã através do batismo. É fortalecida quando jovem com o sacramento da crisma e constitui um lar pelo matrimônio etc.

Nem todos os ritos são necessariamente religiosos. Por exemplo, o casamento civil, a festa de entrega dos diplomas, as paradas militares, os funerais, são entre tantos outros, ritos que acompanham momentos especiais da sociedade.

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Nas nossas comunidades quais são os rituais e o que eles querem expressar? Que rituais religiosos você conhece?______________________________________________________________________


Outra forma de culto, ou de expressão do sentimento religioso, é a oração. Através da oração, a pessoa sente-se diretamente em contato com o Transcendente.

As orações possibilitam a expressão de momentos importantes da vida individual e coletiva: dor, sentimento de perda, alegria, agradecimento, perdão...


UMA RELAÇÃO DE CONFIANÇA


Uma pessoa conta a um amigo um segredo muito importante, um sentimento com relação a alguém, um medo do qual se envergonha, um desejo... O amigo, porém, passa o segredo adiante. Conta para outras pessoas aquilo que foi contado apenas para si. Quebra a confiança nele depositada.

De fato, a confiança é fundamental para qualquer relação profunda. Na religião, ela se exprime na fé. Ter fé importa confiança, entrega, anuência (aceitação) pessoal a Deus.
A fé é um aspecto integrante do sentimento religioso.

No Antigo Testamento, o exemplo por excelência da fé foi Abraão. Tornou-se modelo e ponto de referencia fundamental. Em dois momentos de sua vida a fé encontrou seu ponto alto. A partir deles podemos compreender essa dimensão de entrega, de confiança. Ainda envolvido no mundo dos deuses, Abraão deixa tudo para seguir esse Deus, que lhe promete fazer dele uma grande nação, abençoa-lo, engrandecer-lhe o nome e transforma-lo numa bênção (Gn 12,2). Só em gesto de profunda entrega e confiança nesse Deus pode Abraão lançar-se nessa aventura: arrancar-se de sua terra, parentela e caminhar para o desconhecido, apoiado unicamente na Palavra do Deus que o chamou. Em outro momento, a provação ainda foi maior e a demonstração de fé mais surpreendente e grandiosa. A esperança de realização da primeira promessa pendia da vida daquele menino, Isaac, filho único de sua velhice. O futuro da grande nação concentrava-se na pequenez daquela criança. Ela significava a encarnação da promessa, da bênção de Deus para e em Abraão. E eis que lhe é pedido sacrifica-lo. Só o extremo da fé-confiança, só uma total e radical entrega a Deus pode explicar a coragem de Abraão de preparar-se e encaminhar-se para o ato do sacrifício do filho (Gn22). Assim esses dois exemplos de Abraão nos fazem ver a dimensão pessoal existencial da fé como entrega, compromisso, e o aspecto comunitário, enquanto Abraão assume tal atitude na clara consciência de ser o “Pai de um povo”. (Libânio, pág. 123)

Nas sociedades modernas, nem sempre, porém, temos oportunidade de expressar profundamente a fé, pois somos educados dentro dos valores e conteúdos de uma determinada religião e nem “paramos para sentir” a nossa fé.

As transformações da nossa sociedade, cada vez mais rápidas, também se refletem na questão da fé.

Para os nossos antepassados cristãos, a fé era alguma coisa inquestionável. Aliás, nem podiam duvidar e muitas vezes nem questionar pequenos aspectos da expressão religiosa. Religião e Estado andaram de mãos dadas durante muito tempo. Questionar uma era questionar o outro, com todas as conseqüências que podiam advir.
Mas o mundo foi mudando. Aconteceu a Reforma, e outras religiões cristãs foram surgindo e evoluindo. No Brasil, a religião católica, chegada com o colonizador, encontrou as religiões indígenas, com suas expressões e crenças características. Além disso, sofreu também a influencia das religiões africanas, professadas pelos que para aqui foram arrastadas como escravos.

O desenvolvimento da ciência colocou em xeque muitas crenças religiosas. Se Giordano Bruno e Galileu Galilei foram condenados por suas idéias, hoje as crianças aprendem no primeiro grau que a Terra é um astro a mais no universo. Em conseqüência do embate religião-ciência, o campo da ética também se distanciou da esfera de influencia do mundo religioso. Atualmente, é aqui que se colocam os conflitos mais agudos com a fé nas sociedades ocidentais.


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Em quê, de fato, acreditamos? Como explicamos a fé religiosa?


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SÍMBOLOS E SINAIS


Quando uma pessoa gosta de outra, tem com relação a ela um comportamento especial. Seja uma relação de amor ou de amizade, as pessoas procuram estar juntas, encontra-se constantemente, trocar idéias, saber notícias uma da outra. Trocam presentes e guardam recordações que, para quem não partilha esse sentimento, podem parecer bobagens: uma flor roubada no jardim, um guardanapo da lanchonete, um vaso de pé quebrado... Esses objetos adquirem para as pessoas envolvidas um significado especial e se transformam em sinais da ligação entre elas.

Em outras palavras, “o homem é, por natureza, um ser sociável”. Necessita continuamente comunicar-se com os demais, para transmitir o que pensa ou sente. Ao mesmo tempo, em seus comportamentos sociais não pode renunciar à sua época, à sua civilização, ao meio ambiente em que vive, à influencia da educação recebida, à pressão que exercem sobre ele os meios de comunicação etc. Todas as realidades que constituem a experiência humana podem ser transmitidas aos demais, mas nem todas podem ser traduzidas para a linguagem conceptual, racional, porque se trata muitas vezes de manifestações espontâneas, quase inconscientes, e porque o homem dispõe de muitos recursos, além dos estritamente verbais, para transmitir seu modo pessoas e próprio.

Por isso, precisamos dos símbolos para nos comunicar. São representações arbitrárias, compostas de gestos, palavras ou imagens que variam de acordo com as culturas e os tempos, de realidades que não podem ser expressadas na linguagem conceptual. (BUP 2, pág. 123).

Os símbolos, com seus significados especiais, permitem que cada pessoa seja capaz de transcender seu próprio mundo e se abrir para o geral e universal. Além de sinais e símbolos da ligação entre as pessoas como, por exemplo, as alianças de casamento, existem também sinais e símbolos de ligação da pessoa humana com o Transcendente. É principalmente no mundo religioso que a linguagem simbólica encontra o seu lugar. Não podendo expressar adequadamente a experiência da relação com o Transcendente, a pessoa humana serve-se de imagens, de símbolos, de analogias (semelhanças).
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O símbolo tem três funções principais: assumir as experiências mais fundamentais ou mais profundas da existência humana, traduzir essas experiências para o nível da consciência e expressar ou comunicar essas experiências.
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Segundo Mircea Eliade, o simbolismo desempenha um papel considerável na vida da humanidade. É graças aos símbolos que o mundo se torna “transparente”, capaz de mostrar a transcendência. Graças ao símbolo, o ser humano sai de sua situação particular e se abre para o geral e para o universal.

Embora existam símbolos restritos a um grupo de pessoas ou a uma sociedade, como a cruz para os cristãos, existem também os símbolos universais. A água, em qualquer espaço e tempo religioso, purifica, desintegra, lava os pecados, regenera.

A Mãe-Terra dos povos antigos transformou-se hoje em terra natal dos povos ocidentais.

Carl Jung segue linha semelhante, ao afirmar que, “por existirem inúmeras coisas fora do alcance da compreensão humana é que frequentemente utilizamos termos simbólicos como representação de conceitos que não podemos definir ou compreender integralmente. Esta é uma das razoes por que todas as religiões empregam uma linguagem simbólica e se exprimem através de imagens” (C.G. Jung, O homem e seus símbolos.).

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O cotidiano está marcado por uma infinidade de símbolos. Enumere alguns desses símbolos, especialmente os religiosos e explique o que eles significam.______________________________________________________________

Conclusão


O fato religioso tem como termos referenciais a pessoa humana (eu), o ser transcendente superior (Deus) e as mediações que põem em contato os dois termos anteriores. No caso da religião católica, essas mediações são designadas sacramentos, a saber: os sete Sacramentos, a Palavra de Deus, o Próximo etc.

Como conseqüência imediata da relação religiosa a vida ganha sentido, isto é, a vida se apresenta como obra não do acaso nem da necessidade ou destino, mas de um desígnio (de um projeto) pessoal amoroso de Deus. Daí que ela, a vida, se orienta para um fim igualmente pessoal, fonte de confiança e de esperança. A história humana é vista, assim, como uma obra comum na qual “as ações dos homens encaminham a todos e cada um, apesar dos retrocessos impostos pela presença do mal, a uma forma de ser que responda às suas aspirações mais elevadas, na qual a justiça se imponha à injustiça, o amor ao ódio, e na qual os valores mais elevados se torne realidade”.



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Para avaliar ou reconhecer a religiosidade de uma pessoa, essas poderiam ser as perguntas iniciais indispensáveis:

· Reconhece a existência de um ser superior?
· Esse reconhecimento se expressa em práticas concretas e particulares?
· Essas práticas procuram dar uma resposta às perguntas do sentido da vida?
· Essas respostas afirmam que a vida vale a pena de ser vivida e em comunhão com todos os outros?
· Tudo isso acontece dentro de uma instituição religiosa particular?
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O espaço sagrado e sacralização do mundo


Bibliografia: Mircea Eliade – O sagrado e o Profano: Introdução e Capitulo 1 – pg. 13 a 57


Apontamentos:

Rudolf Otto, em 1917 fez um estudo de grande repercussão. Ele não estudou as idéias de Deus e de religião, mas sim, as modalidades da experiência religiosa. Ele dá atenção especial para o aspecto irracional da religião e entende que o “Deus vivo” para o crente não é uma idéia abstrata, mas um poder terrível. Descobre o temor religioso diante do mistério, do sagrado. O ser humano tem o sentimento de profunda nulidade frente ao sagrado. Mas, o aspecto da irracionalidade não é a única dimensão do sagrado. O sagrado em sua totalidade é algo muito mais complexo. A primeira definição é que o sagrado se opõe ao profano.

O sagrado se manifesta como algo absolutamente diferente do profano. O ato da manifestação do sagrado se denomina hierofania. A historia das religiões é construída por hierofanias (manifestações do sagrado). Trata-se de um ato misterioso: a manifestação de algo “de ordem diferente” – de uma realidade que não pertence ao nosso mundo – em objetos que fazem parte de nosso mundo “natural”, profano.

Para certos povos o sagrado se manifesta em pedras ou arvores. Isso não é ignorância ou superstição, mas o modo de conhecer o mundo. Não se trata de uma veneração da pedra como pedra, mas a pedra é adorada porque “mostra” algo que já não é pedra, mas sim o sagrado. Há uma reelaboração do sentido dos objetos que compõem o mundo. O objeto torna-se outra coisa, embora continue a ser ele mesmo. O sagrado opera uma transformação nas coisas do mundo. O mesmo vale para o ritual católico; na missa, o pão e o vinho se transformam no corpo e sangue de cristo, mas permanecem sob a forma de pão e vinho. É o mesmo que acontece com a pedra. A pedra revela o sagrado. Sua realidade imediata transmuda-se numa realidade sobrenatural.

O ser humano religioso procura estar o mais possível perto do sagrado. A dessacralização do mundo é uma descoberta recente do ser humano (modernidade).

Eliade apresenta o sagrado e o profano como duas formas de ser no mundo. Para a consciência moderna, um ato fisiológico – a alimentação, a sexualidade, é um fenômeno orgânico. Mas podem ser um “sacramento”, ou seja uma comunhão com o sagrado. O sagrado e o profano são duas situações existenciais assumidas pelo ser humano na historia.

Há uma diferença de experiência religiosa que se explica pelas diferenças de economia, cultura e organização histórica social. Ex.: uma sociedade pré-agricola, especializada na caça, não podia sentir da mesma maneira a sacralidade da terra-Mãe.
ESPAÇO SAGRADO


Para o religioso o espaço não é homogêneo. Há espaços sagrados e espaços não sagrados. O espaço real é o espaço sagrado. Quando o sagrado se manifesta (hierofania) há uma ruptura na homogeneidade do espaço, como também revelação de uma realidade absoluta.

O religioso sempre se esforçou por estabelecer-se no “Centro do mundo”. Por outro lado, para a experiência profana, o espaço é homogêneo e neutro. Todo espaço sagrado implica uma hierofania, uma irrupção do sagrado que tem como resultado destacar um território do meio cósmico que o envolve e torna-lo qualitativamente diferente.

Não são os seres humanos que livremente escolhem o terreno sagrado, este espaço é procurado e descoberto com a ajuda de sinais misteriosos. A pessoa religiosa procura construir o espaço sagrado, ou seja consagrar espaços do mundo, isso acontece não como um trabalho humano, mas como reprodução da obra dos deuses.

A terra habitada por um povo é santificada, o território é demarcado do resto do universo. Um determinado povo se constitui como tal e encontra sua unidade ao se pensar como povo de Deus. Para existir, ele precisa encontrar a sua terra, esta é a terra prometida designada pelo poder sobrenatural. O caso do povo judeu na busca da terra prometida é o mais rico exemplo, mas o mesmo ocorre com todos os povos, de uma forma ou de outra.

O que caracteriza as sociedades tradicionais é a oposição entre o seu território habitado e o espaço desconhecido que o cerca: o primeiro é o mundo, o “nosso mundo” o cosmo, o resto é outro mundo, o caos. Da perspectiva das sociedades arcaicas, tudo que não é o “nosso mundo”, ainda não é um mundo. Um território para ser “nosso” precisa ser criado de novo, consagrado. Foi assim que os conquistadores espanhóis e portugueses tomaram posse, em nome de Jesus Cristo, dos territórios que haviam descoberto e conquistado. A celebração da primeira missa é um marco de “inauguração” do Brasil. A colocação da cruz equivalia à consagração da região, um novo nascimento.

O ser humano moderno também está constantemente realizando um esforço de constituição do seu universo, que procura separar um “nós” em relação aos “outros”. Os limites do mundo moderno se ampliaram muito. Mesmo considerando-se que o universo conhecido já envolve o planeta como um todo, resta o temor do que se passa fora da própria terra.

O “outro mundo” é então o interplanetário, e o receio é o de enfrentar os seres extra terrestres. A dimensão do sagrado redefine-se, mas não desaparece. A chegada do homem à lua só se torna real no momento que em seu solo é fincada a bandeira norte-americana, como símbolo sacralizado de uma nação e de um povo, que passa a se sentir “endeusado” por ter sido capaz de conquistar o espaço.

O “nosso mundo” situa-se sempre no centro. Um universo origina-se a partir do seu centro, estende-se a partir de um ponto central que é como o seu “umbigo”. O centro do mundo é o lugar da ruptura de nível, onde o espaço se torna sagrado. O universo se desenvolve a partir do centro. Por isso as Igrejas, sempre construídas no centro das cidades e representando o vinculo com Deus, com o céu e as 4 direções do mundo. Também a cidade é construída a partir do Santuário.



O tempo sagrado e os mitos

Da mesma forma que a visão religiosa define uma perspectiva de espaço, ela define também uma perspectiva de tempo. O tempo sagrado, ao contrário do profano, que avança sempre, é um tempo reversível. Toda festa religiosa tem basicamente essa dimensão: tornar novamente presente um tempo mítico original e instaurador do mundo.
A festa religiosa é comemoração mas, também, rememoração. Participar de uma festa religiosa é, assim, penetrar numa outra dimensão do tempo, penetrar no Tempo mítico e sair da vida cotidiana, “ordinária”.

O que um cristão que vai à missa católica ou a um culto protestante está fazendo é sair do tempo do dia-dia em busca de uma atividade especial, sagrada, que permite re-encontrar as origens e o significado maior da vida. Por isso as festas se repetem regularmente, de tempos em tempos; elas trazem de volta a memória do passado, tornando visível a dimensão cíclica do tempo sagrado, em que as coisas vão e voltam, em que há uma espécie de eterno retorno. Por isso também, passada a festa, é possível começar de novo, esquecendo as figuras do passado e enfrentando com ânimo novo as dificuldades da vida.

A festa revigora porque, celebrando a origem, apaga as agruras do dia-a-dia e permite renovar as esperanças no futuro. Esse constante relembrar das origens para garantir o constante recomeçar, renovar da vida só se torna possível em virtude dos mitos. Mas, afinal, o que são mitos, no sentido religioso do termo?

O mito conta uma historia sagrada, quer dizer, um acontecimento primordial que teve lugar no começo do Tempo. Contar uma historia sagrada equivale a revelar um mistério porque os personagens do mito não são seres humanos, são deuses ou heróis civilizadores, e os homens só podem conhecê-los porque suas histórias foram “reveladas”. Uma vez revelado – assumido como tal – o mito se apresenta como verdade absoluta, inquestionável.

Narrando como as coisas vieram à existência, o homem explica-as e responde indiretamente a outra questão: por que elas vieram à existência. O porquê insere-se sempre no como. E isso ocorre em função de o mito revelar a irrupção do sagrado no mundo, causa última de toda existência real.

Nos mitos se apresentam formulações tradicionais de antiguidade quase sempre difícil de estimar. Nesse nível, os mitos são conhecimentos tribais transmitidos, através de reiteradas narrações, de uma geração a outra. Eles têm uma significação vital. Não somente representam mas também são a vida psíquica da tribo primitiva, que se desintegra e percebe instantaneamente ao perder a herança mítica, como o homem que perdeu a alma. A mitologia de um povo é sua religião viva, cuja perda é sempre e em toda parte, mesmo no caso do homem civilizado, uma catástrofe moral.

Em virtude dos mitos, o homem só se reconhece verdadeiramente homem na medida em que imita os deuses, os heróis civilizadores ou antepassados míticos. O homem religioso é alguém que se faz a si próprio, na medida em que procura imitar os deuses ou a orientação que deles provém.

Os mitos são instrumentos de crença para os que os aceitam e por eles pautam suas vidas. A crença, essencial à aceitação do mito, explica-lhe a afetividade num determinado contexto cultural. Se não há homens concretos pautando suas existências por certos significados culturais,estes se tornam coisa morta, quando muito, lembrança do passado. O próprio fato da crença supõe que, subjetivamente, isto é, para quem acredita, o objeto da crença não é mitológico.

Desse modo, embora se possa falar do “mito de Adão e Eva”, pois hoje predomina a noção cientifica da evolução homínida, para muitos Adão e Eva são realidade histórica e não uma forma simbólica de tratar da criação do mundo. Tanto é assim que, nos Estados Unidos, os crentes fundamentalistas, para quem a Bíblia deve ser entendida ao pé da letra, conseguiram garantir judicialmente que nas escolas de determinadas locais sejam ensinadas as duas teorias: a do evolucionismo e a da criação com Adão e Eva.

Para quem acredita, os mitos não são realmente mitos, no sentido de elaborações culturais, senão verdades. Portanto a não crença em determinada narrativa, tradição ou explicação é essencial a sua avaliação como mito, da mesma forma que a crença em sua avaliação como mito, da mesma forma que a crença em sua verdade e validade é essencial a sua aceitação como elemento efetivo de cultura. Não existe o mito por si mesmo.

Parece mais útil, em vez de considerar esse assunto uma falsidade, perceber que os mitos são repositórios de alguma das mais belas tentativas feitas pelos povos, em todo o decorrer da historia, para dar significado aos problemas da condição humana.
Os mitos são, portanto, uma linguagem, uma forma de interpretar a existência e, assim, sua “verdade” está na capacidade que tenham de orientar os homens em suas trilhas.


Religião e magia

E aqui chega ao aspecto crucial das religiões – todas elas operam nos momentos fundamentais em que a vida parece ameaçada, dando aos homens a força necessária para viver. E o mesmo ocorre com a magia, tornando-se estabelecer a distinção entre religião e magia.
Na religião, o indivíduo é considerado subordinado à vontade dos seres sobrenaturais. Na magia, considera-se que, sob certas condições, o individuo pode dominar e controlar as forças sobrenaturais.

Enquanto no estado religioso o individuo reconhece que seu bem-estar depende da superioridade dos poderes sobrenaturais, o mago acredita poder controlar o sobrenatural. Ele crê que tem poder sobre o poder, crença essa que é compartilhada pela comunidade à qual pertence. Se o fiel é humilde, o mago tem certa arrogância ou, pelo menos, autoconfiança.

Tanto na religião como na magia, a participação do grupo é fundamental. Trata-se de experiências coletivas, socialmente construídas e organizadas. Uma mesma visão do mundo é sempre compartilhada pelo grupo. Uma mesma visão do mundo é sempre compartilhada pelo grupo. As práticas religiosas e magia expressam e reforçam a solidariedade de cada grupo, tornando todos os seus membros conscientes da necessidade de lealdade entre si.

O sentido religioso serve, por assim dizer, para cimentar a união do grupo, que se expressa e realiza no compartilhar uma crença comum. São as atividades rituais, decorrentes do mito, que permitem essa união. É também da experiência ritual que surge com nitidez a distinção entre o sagrado e o profano. Os rituais sagrados trazem a marca do incomum, do extraordinário, do que não se deve considerar levianamente, do “fora deste mundo”.

Cria-se pelo rito, que é a atualização do mito, um clima especial, um fervor emocional. As ligações emocionais que se estabelecem através do sagrado são, portanto, diferentes das da vida profana. E as sensações que acompanham a crença no sobrenatural envolvem espanto, sentido de mistério e, às vezes, horror.

Enquanto crenças, a religião e a magia envolvem pensamento, têm a ver com a natureza simbólica do comportamento humano. O pensamento mítico não deixa de diferenciar o mundo natural do sobrenatural, mas isso não é o importante. Na magia, o sucesso ou o fracasso, a felicidade ou a desventura, a vida ou a morte, tudo se sujeita à ação de forças invisíveis. Assim, nada é “impossível”, tudo pode acontecer, poderes ocultos estão sempre prestes a agir.

Ao contrário do pensamento místico nada acontece por acaso. É por isso que muitos antropólogos afirmam que, na magia, há uma preocupação com o estabelecimento de relações que vai mais longe do que na ciência. Assim, por exemplo, se um engenheiro é capaz de explicar por que uma ponte caiu, um mago procurará explicar por que essa ponte caiu exatamente naquela hora, em cima daquelas pessoas. No pensamento mágico, tudo está ligado a tudo; tem-se um modo de explicar o mundo. O mágico acredita que se compreender as leis fundamentais que regem o mundo, é possível intervir nele, controlando-se as manifestações dos fenômenos.
As leis da magia são leis da simpatia, isto é, da afinidade entre seres e coisas. Existem dois tipos de relações simpáticas:

· Relações de contigüidade: elementos que tenham estado em contato continuam unidos após separação, isto é, mesmo à distancia continuam a agir um sobre o outro;
· Relações de similaridade: o semelhante produz o semelhante, isto é, o efeito se parece com a causa.

A essas relações acrescenta-se a de antipatia, isto é, a lei de que “o contrário age sobre seu contrário”. Essa forma de manipulação mágica utiliza a contrariedade: um ritual que atire água sobre o solo visa eliminar a seca; a destruição de uma roupa velha pode servir para abrir caminho a uma vida nova.

Em todos esses casos, a magia pressupõe que às ligações entre idéias vinculam-se relações causais entre as coisas. Por exemplo, o mago pode atuar sobre cabelos, saliva, unhas ou roupas de uma pessoa na intenção de produzir determinados efeitos sobre ela: seduzir, curar, enfeitiçar e até matar. Da mesma forma, é possível atuar sobre imagens da pessoa: uma foto, um boneco, até mesmo o nome.

Nas religiões, ao contrário da magia, o que importa é acatar a vontade divina. Os homens podem interferir nos acontecimentos, mas não diretamente. É preciso aceitar e promover a mediação dos deuses, pedir para que tenham boa vontade, agrada-los para que sejam propícios aos homens. Além do mais, as religiões fornecem a seus seguidores um código de ética, uma orientação sobre como agir no mundo de acordo com os desígnios divinos.


A Questão do sofrimento

Todo esse conjunto vasto de crenças e práticas religiosas e mágicas, ritos e mitos, é, como já afirmamos, de crucial importância para os homens em seus momentos difíceis, pois fornece um quadro explicativo sobre a natureza do universo e o sentido da vida. É exatamente nas circunstancias em que estão mais ameaçados que os homens mais recorrem aos domínios do sagrado.

Que circunstancias são essas? Basicamente, todas aquelas ligadas ao sofrimento e aos medos que ele desencadeia. Parece que aquilo que os homens menos conseguem suportar são as ameaças ao poder de compreensão, as ameaças aos significados que construímos para a vida. Na medida em que o homem só existe como tal no universo da cultura, ou seja, através dos sistemas simbólicos, todas as vezes em que estes parecem falhar se sentem atingidos pelo medo do caos: nos limites de sua capacidade de análise, nos limites de seu poder de suportar o sofrimento e nos limites de sua força moral.

Pode parecer estranho, mas os homens se sentem inquietos e amedrontados quando não conseguem compreender e explicar determinados acontecimentos. Assim, por exemplo, é mais fácil explicar uma praga ou uma seca em função da quebra de um tabu ou de um feitiço do que simplesmente admitir que não sabe o que está ocorrendo.
É mais fácil aceitar uma explicação precária ou insatisfatória para algo perturbador do que conviver com a ausência de uma explicação. O que não faz sentido é aterrador. Por isso é mais fácil acreditar, por exemplo, em demônios ou na vingança dos deuses do que ficar entregue à idéia de que as coisas acontecem por acaso.

As explicações dão aos homens a sensação de que o mundo pode ser controlado se se fizer o que é certo. Assim, por exemplo, uma avalanche, um furação, uma tempestade não deixarão de matar, mas é mais fácil aceita-los como algo que “estava escrito” do que admitir que a natureza pode ser incontrolável. O mesmo ocorre diante da maldade humana, da inveja, da vingança, da injustiça. A religião não as impede, mas fornece recursos para controlar o sofrimento que elas causam.

Da mesma maneira, a religião dá condições para suportar o sofrimento nas situações especiais de doença e luto. Isso não significa que a fé religiosa possa impedir o individuo de sofrer. O que ela faz é um pouco o inverso: torna possível enfrentar a dor, tolera-la, enfim, torna possível sofrer. Veja-se, assim, a maneira como o cristianismo lembra a seus adeptos que, se Cristo sofreu por nós sendo filho de Deus, nós também devemos ser capazes de enfrentar a dor com dignidade. Ou então, quando os espíritas invocam a lei do Carma, pela qual se recebe de volta tudo aquilo que se dá,. Bem ou mal,e,assim, tornam explicável e sofrível o sofrimento do presente.

Como ultimo ponto, o problema da injustiça remete-nos para a questão do mal. Por que os bons sofrem quando muitos maus são beneficiados pela vida? A religião não nega isso, não elimina o fato de que a dor sempre parece injusta para aquele que é afetado. O que a religião faz é construir explicações coerentes para o fato, de que “é assim mesmo”, de que “inocentes podem pagar por pecadores”.

A religião permite, mais uma vez, que a injustiça seja enfrentada, sem que a idéia de justiça caia por terra. Assim, por exemplo, quando em nossa cultura se afirma que “Deus escreve certo por linhas tortas”, o que se está fazendo é dar uma explicação que coloca a dor no plano dos desígnios divinos, de forma que uma razão de ser para ela poderá sempre ser encontrada.

A religião fornece, pois, o fio com que os homens tecem significados para situações difíceis, que, sem ele, se tornariam aterradoras e insuportáveis. Repetindo, portanto, a religião não elimina o sofrimento ma o torna suportável conferindo-lhe uma razão de ser, um SIGNIFICADO. Como dizia Riobaldo, personagem de Grande sertão: veredas, “reza é que sara da loucura”.




INTRODUÇÃO:
AS RELIGIÕES NO BRASIL
CONTEPORÂNEO



Antonio Flavio Pierucci
E Reginaldo Prandi



A religião católica sempre foi majoritária e homogênea no Brasil. Reúne ainda hoje três quartos da população adulta. Entre os católicos, a maioria continua sendo constituída de católicos tradicionais, incluindo tanto os que freqüentam a igreja de modo esporádico, geralmente em ocasiões especiais, como batizado, casamento e cerimônias funerárias, como os que tem freqüência regular aos serviços religiosos, especialmente a missa, mas que não se envolvem em movimentos de renovação ou agremiações que propõem diferentes modelos de reavivamento da vida católica. Do catolicismo tradicional fazem parte também muitas praticas populares de devoção aos santos, de promessas, milagres e peregrinações a santuários, como os de Nossa Senhora Aparecida, a padroeira do Brasil, na cidade de Aparecida, Estado de São Paulo; o de São Judas Tadeu, em São Paulo; o de Nossa Senhora de Nazaré, em Belém do Pará; as peregrinações a Juazeiro do Norte, na Bahia; de Padre Cícero, no Ceará, e muitas outras.
Porém a maioria dos católicos tradicionais mantém a religião apenas como identidade social, indo à igreja somente para os ritos de passagem. Os católicos tradicionais representam 61% do total dos brasileiros adultos.

Se por um lado, a maioria católica é formada de católicos tradicionais, há por outro lado uma fatia significativa de 14% de brasileiros que vivem o catolicismo a partir de orientação pessoal por uma das diferentes modalidades de internalização ou engajamento. São os católicos das Comunidades Eclesiais de Base. Do Movimento de Renovação Caristámica Católica, das Equipes de Nossa Senhora, dos Encontros de Casais com Cristo, dos Grupos de Jovens, da Comunhão e Libertação e um sem números de movimentos e associações de caráter regional e local, de pastorais coletivas e de organizações de culto. Diferem dos católicos tradicionais sobretudo em virtude do fato de que para eles a religião é uma escolha, em que os valores e atitudes desejados são explicitados e enfatizados. A adesão a esses movimentos implica a idéia de conversão, de reorientação religiosa. Os tradicionais apenas seguem a religião na qual foram criados.

Desse leque católico, interessa sobretudo chamar a atenção para dois movimentos.
As CEBs, movimento formado no curso dos anos 1960 até os de 1970 e hoje em visível declínio, reúnem ainda 2% do total, perto de dois milhões de adeptos. Caracterizam-se por valorização da vivencia religiosa que enfatiza os interesses coletivos das classes sociais desfavorecidas, a famosa “opção pelos pobres”. Acreditam na participação militante dos católicos no mundo, de modo a promover a transformação material da sociedade, que consideram socialmente injusta. Atribuem por isso menos importância à esfera da vida íntima como espaço privilegiado da religião. Por sua politizada concepção de mundo, as CEBs têm estado associadas aos mais deferentes movimentos sociais de reivindicação e de construção de identidades no campo e na cidade, muito próximas dos partidos políticos de esquerda, sobretudo o Partido dos Trabalhadores e, em menor grau, o Partido Comunista do Brasil, tendo-se mostrado eficientes na “produção de militantes”, ou seja, na formação de lideranças comunitárias e partidárias de esquerda. Representantes mais avançados do catolicismo fundado na Teologia da Libertação, esses católicos formam contingentes que atingem 3% em Estados como Paraná, Bahia e Ceará.

O movimento de Renovação Carismática Católica, nascido em Pittsburgh, nos Estados Unidos, no final dos anos 1960 e logo transplantado para o Brasil, alcança presentemente 4% da população do país. Os carismáticos, ao contrário dos católicos das CEBs, centram a vida religiosa na esfera da intimidade, desenvolvem acentuado controle moral no âmbito da família, dos costumes e da sexualidade, desinteressam-se completamente dos problemas de caráter coletivo, e, por conseguinte, da militância política. Dão grande importância aos dons do Espírito Santo, sobretudo à xenoglossia – o dom de falar línguas desconhecidas, quando o Espírito Santo se manifesta nos fiéis em transes coletivos, numa reprodução do episódio bíblico da manifestação do Espírito Santo aos apóstolos no dia de Pentecostes – e o dom da cura divina, o que os aproxima bastante dos evangélicos pentecostais. Marcam porém, e fortemente, sua identidade católica, ao acentuarem a devoção a Nossa Senhora, o apego à Eucaristia e a fidelidade ao Papa. A Renovação Carismática pode ser considerada um movimento de dupla reação: para dentro do catolicismo, opõe-se frontalmente aos católicos da Teologia da Libertação: para fora, compete com os evangélicos pentecostais na disputa pelos conversos desejosos de experiência religiosa sensível, de maior imanência do sagrado (Prandi, 1992).

Dentre as diferentes modalidades religiosas no Brasil de hoje, o movimento carismático é o mais fortemente feminino: nele as mulheres perfazem nada menos que 70% dos adeptos. As mulheres também são majoritárias nas CEBs (57%), como aliás em todas as formas de filiação religiosa. Os homens são maioria somente nos dois extremos do quadro religioso brasileiro: entre os católicos tradicionais (53%) e os que se declaram sem religião (64%). O movimento carismático caracteriza-se pela extração de classe média de seus seguidores, enquanto as CEBs são formadas sobretudo por indivíduos de classes mais baixas.

Os evangélicos totalizam 13% da população, cerca de treze milhões de brasileiros. São normalmente classificados em dois grandes ramos: os protestantes históricos e os pentecostais.

Os protestantes históricos são representados pelas igrejas reformadas de origem européia e norte-americana, instaladas no Brasil desde o século passado. Estão completamente enraizados na sociedade brasileira, caracterizando-se hoje por baixo grau de proselitismo, reproduzindo-se tradicionalmente de geração em geração. Suas principais denominações são: Luterana, Batista, Presbiteriana, Metodista, Episcopal e Congregacional, denominações que, na prática, podem resultar em muitas outras subdivisões. Os evangélicos históricos perfazem hoje 3% da população, alcançando cifras maiores nos Estados do Rio Grande do Sul (7%) e Rio de Janeiro (6%).

Os evangélicos pentecostais tiveram sua origem no reavivamento do protestantismo nos Estados Unidos, caracterizando-se por incansável exercício de conversão dos mais pobres e desamparados. Dos pentecostais, 33% são muito pobres, com renda familiar de até duzentos dólares. A taxa de 8% de desempregados entre os pentecostais está acima da média nacional de 6%, enquanto a taxa de ocupados como trabalhadores por conta própria irregulares – os que vivem de bicos e biscates, componentes da parcela marginal de trabalhadores – chega a 27%, quando a taxa nacional é de 19%. A proporção de analfabetos é bem mais alta entre os pentecostais que entre todos os brasileiros. Esses são indicadores inequívocos de condições sociais que contribuem muito para tornar homens e mulheres incapazes de organizar a própria vida, obrigando-os a buscar lideranças e instituições que se disponham a fazer isso por eles, quer como uma dádiva, com os que estiveram por tanto tempo familiarizados na sociedade brasileira tradicional, quer como aprendizado de uma disciplina de si que os capacite a melhorar de vida.

Os pentecostais têm o culto bastante centrado no apelo emocional, sobretudo no dom das línguas, ou xenoglossia, e no dom de cura. As principais denominações pentecostais de origem estrangeira são a Congregação Cristã no Brasil, a Assembléia de Deus e a Igreja do Evangelho Quadrangular. A partir de 1970, o pentecostalismo deu origem a diversas denominações constituídas já em solo brasileiro, com ênfase cada vez mais forte no dom da cura, e por isso denominadas pentecostalismo de cura divina. Mais recentemente surgiram as igrejas agora chamadas de neopentecostais (Mariano, 1996). De modo geral, especializaram-se no uso da televisão, voltaram o culto para as massas, em grandes espaços, centrando-o enfaticamente nos exorcismos, pregando e difundindo a Teologia da Prosperidade, originada nos Estados Unidos, onde é chamada HEALTH AND WEALTH GOSPEL, que valoriza a prosperidade e reabilita eticamente o dinheiro e os ganhos materiais. As principais igrejas formadas em solo brasileiro são : O Brasil para Cristo, bastante antiga e considerada uma igreja de transição, Casa da Benção, Nova Vida, Deus é Amor, Igreja Universal do Reino de Deus, Internacional da Graça Divina e Renascer em Cristo. Essas denominações maiores cindiram-se e continuam a cindir-se em um grande número de igrejas pequenas. Entre os pentecostais, o mal é sempre visto como obra do demônio, adotando por isso as igrejas de formação mais recente o exorcismo, o exercício recorrente da vexação e expulsão dos demônios, que identificam com divindades e espíritos das religiões afro-brasileiras. Os pentecostais insistem na permanência de seus adeptos longe da política, fazem propaganda contra partidos e candidatos de esquerda, mas elegem deputados pastores que procuram, pelos mais diferentes meios, ganhar espaço para o Evangelho, o que na prática significa vantagens e privilégios para as suas igrejas, que eles consideram discriminadas negativamente em um país de cultura católica (Pierucci, 1989; Mariano e Pierucci, 1992).

Os espíritas seguem a religião do francês Alan Kardec, introduzida no Brasil no final do século XVIII e que desde então tem exercido grande fascínio sobre camadas médias urbanas. Representam hoje considerável contingente de 3% dos brasileiros. Cerca de três milhões de brasileiros são espíritas de mesa branca. Valorizam o progresso espiritual e intelectual do individuo, estimulando a mobilidade social por meio da escolarização. Dão grande importância ao trabalho assistencial aos desvalidos de toda sorte. Mostram grande capacidade de organização burocrática e forte apego a um tipo de literatura religiosa amplamente produzida, através da psicografia, pelos espíritos de mortos ilustrados.

Os Kardecistas se destacam dentre todos os grupos religiosos pela sua elevada escolaridade: 35% de seus adeptos tem segundo grau e nada menos que 25% tem curso superior. Suas mais altas concentrações estatísticas verificam-se na cidade de São Paulo (8%) e Rio de Janeiro (8%). Mais da metade dos Kardecistas, alias, encontra-se nas capitais e regiões metropolitanas (53%), outros 36% em cidades grandes e médias e apenas 11% residem em cidades pequenas do interior – cidades que somam 33,5% da população brasileira, o que reforça sua característica de religião urbana.

Abrangendo perto de um milhão e meio de brasileiros adultos, as religiões afro-brasileiras são formadas primeiramente pelas religiões tradicionais de origem africana, com 0,5% da população, as quais recebem nomes regionais: candomblé na Bahia, no Rio de Janeiro e, agora, em São Paulo e nas demais regiões do país por onde se tem disseminado nos últimos vinte anos; Xangô em Pernambuco e Estados vizinhos; tambor de mina no Maranhão e nos Estados da região amazônica; Batuque no sul do país. Até os anos 1960, as religiões tradicionais afro-brasileiras estavam circunscritas às populações negras como religiões étnicas, perdendo aos poucos esse caráter para se constituir em religiões universais, abertas a todos, desde os mais pobres até segmentos das classes médias e altas urbanas. Abertas a todos, sobretudo aos metropolitanos de todo tipo e classe, mas sem distinção racial. Conforme esperado, a maior concentração de seguidores desse grupo religioso encontra-se em Salvador, a chamada Roma Negra, capital da Bahia, com uma taxa de 2%. Embora os números das religiões tradicionais sejam relativamente pequenos, sua profunda penetração na cultura nacional lhes dá grande visibilidade na cena religiosa brasileira.

Outro importante ramo das religiões afro-brasileiras é a Umbanda, nascida no Sudeste nos anos 1930, resultante do contato entre o espiritismo Kardecista e o candomblé. Rapidamente espalhada por todo o pais, hoje reunindo 1% dos brasileiros, a umbanda guarda características de suas religiões fundamentais, sendo desde logo uma religião que mantém em torno de si vasta clientela que a procura para soluções de problemas de saúde, emprego, família, vida afetiva etc., soluções que são buscadas através de oferendas propiciatórias às divindades.

As religiões afro-brasileiras, de ritual bastante complexo, desenvolveram pouco ou nada uma orientação para o comportamento baseada num código de ética, em que a medida de justiça. De bem e de mal esteja em conformidade com critérios universalistas e de bem estar geral da coletividade. Ao contrário, as noções de certo e errado pautam-se pelas relações entre cada fiel e a divindade que o protege, e o mundo é entendido como um campo de conflitos e enfrentamentos no qual o fiel deve procurar sua realização pessoal (Prandi, 1991). Enquanto o kardecismo toma como ideal de sabedoria o individuo que logrou desenvolver-se intelectualmente por meio da escola, alcançando posto elevado na escala das profissões liberais, artes e ciências, as religiões afro-brasileiras valorizam sobremaneira a sabedoria que decorre da própria vivencia, glorificando a senioridade dos que vencem por esforço próprio a partir da experiência concreta da vida e que se destacam na luta pela realização dos sonhos inerentes a todos os que partilham a existência terrena. As religiões afro-brasileiras valorizam o bravo, o experiente, o realizador, o vencedor, mas ainda sofrem com o peso de sua herança da sociedade escravista patriarcal, fazendo com que a valorização da dádiva e o apego ao clientelismo se mostrem ainda presentes e fortes.

As religiões afro-brasileiras representam apenas 1,5% dos brasileiros, mas chegam à proporção de 4% na cidade de São Paulo e de 5% na cidade do Rio de Janeiro, mostrando-se bastante expressivas e especialmente visíveis nesses dois cenários particularmente importantes da vida pública brasileira. São religiões tipicamente urbanas, melhor dizendo, metropolitanas. O candomblé é ainda mais marcadamente metropolitana do que a umbanda (74% contra 69%).

Ao falar de religiões afro-brasileiras, é inevitável tocar na questão racial, na cor de seus adeptos. Quando aqui se diz que elas são hoje, e cada vez mais, propostas religiosas “para todos”, estamos enfatizando o fato de que é bem alta entre esses grupos religiosos a participação de brasileiros brancos. Mais da metade dos fiéis dos cultos afro-brasileiros são brancos (51%). Na vertente umbandista, a proporção de brancos é ainda maior: 56%, numero semelhante ao encontrado nas CEBs (56%), nos evangélicos (56%) e nos sem religião (57%) – taxas ligeiramente inferior à de brancos no conjunto da população (59%).

Ocorre, por outro lado, que a participação dos pretos (blacks), que é de apenas 8% da população, sobe para 15% entre os umbandistas e para 24% entre os seguidores do candomblé, o que obviamente faz subir para 18% a proporção de pretos no conjunto dos cultos afro-brasileiros. Por conseguinte, a cor, ainda hoje, constitui traço sensível na composição dos grupos religiosos afro-brasileiros (sobretudo nos Estados do Nordeste, onde se originaram). Em se tratando porém dos “pardos” ou mulatos, é maior sua presença entre os pentecostais (34%) e os católicos das CEBs (34%), do que entre os afro-brasileiros (29%). Assim, se agora somarmos pardos e pretos (os não-brancos), vamos descobrir que vão atingir a casa dos 45% entre os pentecostais, taxa superior à observada entre os umbandistas, que é de 42%, a qual, por sua vez, é muito próxima da taxa de pretos e pardos nas CEBs católicas: (42%). No candomblé, todavia, a proporção sobe para 57%, o que representa forte contraste em relação ao total da população, no qual a participação de pretos e pardos se encontra na casa dos 40%.

Restam 2% formados de adeptos de um conjunto muito diversificado de religiões que não se classificam nos grandes grupos acima enumerados: Judaísmo, Budismo, Adventista, Testemunhas de Jeová, Mórmons, Seicho-no-eê, Perfst Liberty, Igreja Messiânica, Santo Daime e União do Vegetal, além de seitas de práticas esotéricas e várias outras. Difícil tratar aqui de agregado tão heteróclito. Resta chamar a atenção para dados curiosos, como, por exemplo, sua maior concentração na cidade de Salvador, onde a taxa global dessas outras religiões dobra para 4%.

Vale a pena determo-nos um pouco no grupo dos “sem religião”. Eles são 5%, cerca de cinco milhões. Pelo menos em três grandes capitais sua presença é bem marcada: 6% na cidade de São Paulo, 7% em Salvador e 11% no Rio de Janeiro. Este último dado – mais de um décimo dos cariocas não tem religião – é realmente impressionante. É no Rio de Janeiro que vamos encontrar a população mais laicizada, a mais pluralista em termos religiosos, a menos católica te todo o país.

Ainda dos “sem religião” pode-se dizer que são o grupo mais masculino; que nada menos do que 17% têm instrução universitária: que 26% são jovens entre 18 e 24 anos; que 50% deles são metropolitanos; que sua taxa de ocupação (72%) é das mais altas do país; e, finalmente, que a quantidade de “sem religião” com renda familiar acima de dois mil dólares é o dobro do verificado para o total de brasileiros (6%).

Essas diferentes religiões que se reproduzem no Brasil de hoje podem ser vistas como múltiplas fontes de legitimação as sociedade brasileira e como distintas agências de orientação para a vida quotidiana, sobretudo para imensas parcelas de homens e mulheres marginalizados no curso das mudanças sociais e desertados de sua religião tradicional, o catolicismo, que foi ficando cada vez mais desinteressado de oferecer orientação para a vida quotidiana, sofrendo profundo esvaziamento axiológico, (para dentro de si). Elas se dispõem num amplo e variado mercado religioso, com seus distintos planos que enfocam diferentemente muitas soluções possíveis para o conflito da difícil arte de viver, especialmente quando pouco de realmente significativo para a vida o progresso material, cientifico, intelectual foi capaz de oferecer a essa grande maioria de homens e mulheres.

Considerando-se as características dessas alternativas religiosas que têm tido tão forte apelo junto às massas, pode-se imaginar que o reavivamento da crença religiosa tão vigorosa no Brasil de hoje, ao lidar crucialmente com as questões mais candentes da vida quotidiana em sociedade e da vida privada dos indivíduos, acaba tendo conseqüências no próprio mundo da política. Essas religiões populares podem, certamente, trazer as populações de adeptos para mais perto do sagrado e da magia e os levar, simultaneamente, para mais longe da política.

De fato, as comunidades Eclesiais de Base, que marcaram forte presença no espaço da política, estão em refluxo. No interior do mesmo catolicismo, o Movimento de Renovação Carismática Católica agora se espalha velozmente, usando técnicas e conteúdos doutrinários do pentecostalismo, reintroduzindo o milagre, a preocupação centrada no indivíduo e reinaugurando em grande estilo, uma vez que agora fica disponível para as massas católicas, a valorização do êxtase religioso. O transe do Espírito Santo já é bem comum no interior das igrejas catedrais católicas. Com a generalização do transe – afro-brasileiro, pentecostal, católico carismático – há agora uma ampla variedade de escolhas religiosas que praticam o rito da supressão temporária da identidade para dar lugar à manifestação de deuses, entidades e forças sagradas: orixás, vodus, inquices, caboclos, pretos-velhos, ciganas, pomba giras, exus, boiadeiros, marinheiros, mestres da jurema, espíritos de luz, desencarnados em geral e o Espírito Santo. A expressão máxima do homem não é mais a sua consciência, o ideal religioso prega a negação da identidade como meio para alcançar a experiência de sentido mais profundo.

Fora das CEBs, nenhuma destas modalidades religiosas se propõe a transformar o mundo. O pentecostalismo de cura divina que se alastra pelo Brasil, muito diferente da matriz original protestante desencantada, recolocou em seu antigo lugar a importância da magia e quer a transformação moral do indivíduo isolado no interior da comunidade religiosa, em que ele vigia e é vigiado. Os afro-brasileiros querem o individuo inserido no mundo, mas para tirar dele todo o proveito que possa significar a sua auto-realização, que reafirma o poder da divindade, pelo aumento do axé, a força mágica que move o mundo, na concepção afro-brasileira, numa luta diária contra as adversidades da vida, em que o adepto pode contar fartamente com fórmulas rituais de manipulação de forças sobrenaturais. Os católicos carismáticos apostam numa transcendência imediata, muito diferente da grande e distante transcendência das comunidades de base da teologia da Libertação. Eles crêem na cura pela imposição das mãos, no contato direto com o sagrado, através dos dons do Espírito Santo, abandonando completamente qualquer dos velhos ideais de solidariedade fundados na “opção preferencial pelos pobres” do catolicismo dos anos 1960 e 1970.

Parece assim que a religião no Brasil não só reaviva, mas o faz reassumindo formas que pareciam estar em final de processo de esgotamento, pelo qual caberia à religião modernizada (desmagieizada, desencantada), especialmente, manter e renovar a confiança do ser humano na providencia divina, como garantia ao homem de que ele não está só, embora deva sempre agir neste mundo por si só, sem ter de solicitar com freqüência a interferência de Deus. Mas, ao contrário, a presença dessas religiões populares que apelam constantemente no sentido da intervenção sobrenatural nas coisas deste mundo dá a idéia de que o desencantamento da sociedade, como processo irreversível de mudança sociocultural de abandono da magia (e que nem mesmo teria chegado ainda a muitos setores da nossa sociedade), esta posto em questão. Pois tudo indica que a Igreja Católica percebeu essa inesperada tendência do mundo atual, oferecendo-se aos carismáticos, adotando-os ainda que às vezes de má vontade, para se manter na disputa pelas almas com evangélicos e afro-brasileiros: com os carismáticos a Igreja Católica volta ao êxtase místico, assume a incorporação do Espírito Santo, que apaga momentaneamente a consciência e adere ao milagre na sua forma mais tradicional.

Na verdade, é a própria sociedade que tem se mostrado incapaz de solucionar graves problemas de sua constituição. Tão graves que ela é obrigada a se valer dessa multiplicidade religiosa que leva para longe da vida política e para perto da magia a possibilidade de encontrar respostas para toda sorte de problemas que afligem a população. Por não termos completado a formação de uma sociabilidade capaz de instrumentalizar a participação na vida pública independentemente da construção da identidade e dos mecanismos de representação pela via religiosa de estilo tradicional, as religiões de conteúdos éticos vazios ou acanhados, mas de repertórios mágicos robustos, acabam se mostrando bastante aptas a florescer nessa sociedade problemática, atrasada e sem muitas esperanças confiáveis.

O sucesso da religião e a crise da sociedade urbana, racional, moderna são, assim, faces da mesma moeda, cuja medida é a própria crise da razão. Essas religiões que trabalham o mundo buscando seu reencantamento esbarram, contudo, no fato de que a sociedade, por mais frágil que se encontre, já incorporou, por assim dizer, os elementos fundamentais da modernidade, de tal modo que é impossível pensá-la desprovida de todo o aparelhamento cientifico e racional que a sustenta. Mesmo do ponto de vista das populações, vastos segmentos têm no pensamento moderno não religioso a base da sua experiência de vida. Alem dos segmentos pobres que por várias razões se mostram pouco afetos ao apelo religioso, as classes altas e as camadas médias, sobremaneira escolarizadas, enquanto “representantes” do mundo desencantado, ainda que eventualmente possam fazer uso dos serviços prestados pela religião, como um serviço de utilidade tópica, constituem um limite social à propagação da religião não racionalizada além de um determinado ponto, cujo lugar, a rigor, está ainda para ser desvendado. Conhecer esse limite pode significar, também, a compreensão da força política dessas religiões. Conhecer melhor as religiões, por sua vez, talvez nos permita conhecer melhor esse homem e essa mulher que habitam, solitariamente, a imensidão da cidade brasileira desconhecida e amedrontada.

Neste variadíssimo quadro de alternativas e possibilidades, move-se o converso com uma legitimidade que talvez nunca tenha tido antes; hoje qualquer um se sente com direito de abraçar a religião que melhor lhe convém, ou não abraçar nenhuma. Mais que isso, a conversão não é uma adesão definitiva e permanente. Pode-se trocar de religião tantas vezes quantas necessário for. O transito de uma religião para outra é intenso, o que pode obrigar religiões antagônicas a reconhecerem umas às outras como religião, ainda que esse reconhecimento implique a idéias de que a outra representa o mal a ser desfeito e combatido. A disputa religiosa no Brasil de hoje, às vezes com agressões e enfrentamentos com violência física (caso dos ataques de evangélicos a afro-brasileiros ocorridos no Rio de Janeiro), dá-se entre grupos que poderiam facilmente intercambiar seus participantes. Nesse jogo de negações vai-se construindo um reconhecimento e identidades múltiplas que povoam a cultura de um alargamento da sacralidade jamais conhecido pelo mundo contemporâneo.



Bibliografia:


Católico Praticante, Penélope J. Ryan, ed. Loyola, SP, 1999

Um Sopro do Espírito, Reginaldo Prandi, ed. Eduspi, 1997

Religião e luta de classes, Otto Maduro

Hacia Um Humanismo Cristiano, Margarita Díez Cuesta E Outros, Edelvives, Zaragoza, 1986, P. 63.

Meslin, H. A experiência humana do divino, Vozes, 1992, p. 24

Rigoberta Menchú, em Sem Fronteiras, junho/julho 93, p.26

Mircea Eliade – O sagrado e o Profano: Introdução e Capitulo 1 – pg. 13 a 57

Antonio Flavio Pierucci e Reginaldo Prandi, introdução:as religiões no Brasil contemporâneo

Dom Jorge, O renascimento da Religião

introdução a Mariologia

Introdução:


Maria, a mãe de Jesus, está forte e afetuosamente presente na vida do povo cristão. Também tem, presença marcante na teologia cristã. Entretanto, ela não é cultuada somente nos templos católicos; está presente e atuante também nos terreiros de Umbanda, nas formas esotéricas, nas casas do povo, nos becos onde vivem mulheres e homens excluídos, nas prisões, nas múltiplas formas de sincretismo que permeiam o cotidiano dos pobres...
Neste estudo, o foco está na teologia que fundamenta o culto mariano na Igreja (e nas igrejas), mas com um olhar e a sensibilidade atentos à devoção popular. Buscaremos os fundamentos teológicos da devoção a Maria, juntamente com os ensaios e os fatos de inculturação da fé mariana, as concepções e práticas ecumênicas, as possibilidades de diálogo inter-religioso. No regaço da Mãe comum, são dignos de respeito também os resquícios do culto a Gaia, a Deusa e Grande Mãe Natureza.
A Maria são atribuídos muitos títulos, e representações em imagens tão diversas, que chegam a ser contraditórias. Há segmentos na Igreja Católica que pronunciam exaustivamente o nome de Maria, na preocupação de distinguir-se das Igrejas e agremiações evangélicas, estas receosas de que o exagero nas mediações desvie do culto ao único absoluto, que é Deus. É importante estudar os fundamentos teológicos para chegar a uma compreensão crítica da grande efusão devocional mariana que presenciamos nos dias de hoje.
Dentro de dicotomias dogmáticas, numa Igreja de Cristandade, ocorrem problemas. Há quem acuse a Igreja Católica de uma espécie de “hiperinflação mariana”, uma divinização idolátrica de Maria, numa fé deficitária. Há quem aponte o sincretismo como perigoso. Mas, por outro lado, durante 500 anos a devoção mariana trouxe frutos de vida e santidade na Igreja da América Latina, com numerosos mártires dos meios populares. Maria tem sido veículo para uma fé autenticamente cristã.[1]
Na teologia cristã, um aspecto fundamental é a relação entre Maria e a Igreja. Mas, para estudar Mariologia nessa vinculação eclesiológica, é preciso vencer as barreiras do tom apologético e anti-protestante que marcam a implantação da Cristandade aqui.
O testemunho de cristãos de várias partes do Terceiro Mundo diz que os evangelizadores-colonizadores pregam um Jesus muito pouco humano, que parecia flutuar por sobre a historia e por sobre todos os problemas e conflitos humanos, um Jesus sem importância para a vida. Era um Jesus apresentado como um soberano e poderoso rei ou imperador, governado das alturas, do seu trono majestoso. Só se aproximava dos pobres por condescendência, por graça e compaixão, mas sem participar do chão da vida de opressão e luta dos pobres. A morte desse Jesus não tinha a ver com os conflitos históricos, mas era vista como um sacrifício humano para aplacar a um Deus irritado. Os colonizados e oprimidos foram descobrindo que esse Deus e esse Jesus tinham sido formados à imagem e semelhança dos reis, imperadores e conquistadores[2].
A dogmática implantada aqui na América Latina foi eurocêntrica, ocidentalista e autoritária, impondo aos nativos e aos africanos escravizados aqui as obrigações de uma moral exigente e estrita, que os ameaçava com horrores do inferno. Mesmo quando pregavam um Deus bom, a prática violenta e destruidora anulava essa pregação. Diante de um Deus distante e terrível, que tinha a “cara” dos conquistadores violentos, barbudos, com elmo, arcabuzes e cavalos, o povo passou a buscar santos intercessores, “outros deuses”: sua ajuda, consolo, intercessão, refúgio, misericórdia. Os santos, a cruz de Cristo, os sacramentais, ás vezes é transposição dos seus antigos deuses. Mas, é sobretudo em Maria que encontram o rosto materno de Deus, o sacramento de sua misericórdia. Maria é a figura doce e materna, num mundo violento e machista e diante de uma religião de medo[3].
Maria ocupa um lugar central na dogmática popular da América Latina. Tonantzin, Guadalupe, é o símbolo luminoso de sua presença e proximidade com o povo empobrecido e humilhado, mas sua figura vai se concretizando em diversas invocações e santuários: Aparecida, Luján, Copacabana...[4]
O Magnificat, cântico de Maria, é iluminação fundamental para se manter o coração solidariamente voltado ao mundo dos empobrecidos e oprimidos da América Latina e do mundo. Como entender Casaldáliga no contexto da América Latina, Maria é comadre em Nazaré, índia em Guadalupe e negra em Aparecida.
Este estudo abordará as temáticas de Gonzalez Dorado[5]: a Maria da história, a Maria da fé pascal neotestamentária, a Maria da Igreja magistral e cientifica, e a Maria da devoção do povo.
Leonardo Boff aponta o feminino como principio mariológico fundamental[6]. De fato, será de suma importância desenvolvermos este estudo com abertura às questões de gêneros, na busca da igualdade fundamental das pessoas humanas, da justiça e da fraternidade universal. A mariologia deverá passar pela opção pelos pobres, abertos às maravilhas que Deus opera no coração e na práxis comunitária de mulheres e homens excluídos da sociedade, e até mesmo das Igrejas.

Amantíssima e só[7]
Nancy Cardoso Pereira

Tiro o manto, a manta. Minto.
Experimento a mentira que me manteve
Santa tanto quanto
Amantíssima e só.

Um vestido comum
De uma mulher qualquer.
Desço do altar,
Saio da igreja
Misturada às marias das ruas
Das dores das graças de Lurdes
Fátimas, penhas e conceição.
E, se ainda der,
Se o sagrado ainda me quiser,
Volto pra casa, abro a janela,
Deito no chão e espero esperar.

Sou eu sou Maria
E é quase noite em Nazaré.








I – A Maria Histórica


O principal objetivo do estudo de Maria, a Theotokos (Mãe de Deus), segundo a viva tradição da Igreja cristã, é adentrarmos no próprio mistério da salvação, que está contido em seu nome, como diz São João Damasceno[8].
Em Maria, o povo cristão encontra o itinerário da sua fé[9]. “Nela se resumem as conexões com a Trindade, a Redenção, a Igreja e a História...”[10]. ela está totalmente dentro da salvação de Deus na historia; como diz Clodovis Boff, ela é o mistério da salvação “concentrado”[11].
O regate do Jesus Histórico tem sido fundamental, na caminhada da Igreja da América Latina. Na Cristologia, ao mesmo tempo em que contemplamos o Cristo da fé pascal, retomamos Jesus na sua condição histórica, terrena, situada em Nazaré da Galiléia da Palestina e situada em sua época[12].
O mesmo apelo se faz para a Mariologia. É preciso tirar um pouco o manto que esconde a humanidade de Maria, sua realidade histórica, seu cotidiano, seu ser mulher. Os poemas da pastora Nancy Cardoso são bem oportunos para este exercício.

MARIA DE NAZARÉ SEGUNDO O NOVO TESTAMENTO

Da israelita MARIA, ou MIRIAM, que viveu em Nazaré, e que veneramos como a Virgem Maria, Mãe de Deus e nossa mãe, não temos uma biografia. Assim como para o Jesus histórico, também para a Maria histórica nos faltam dados, pois os fragmentos dos textos que se referem a ela, no Novo Testamento, tem a preocupação da reflexão teológica pós-pascal. Trata-se de interpretação da fé feita pela comunidade cristã, e não de relato histórico.
MARIA, HISTORICAMENTE, É AQUELA QUE ACREDITOU NO PROJETO DE DEUS. A fé marial fala mais de Cristo e do seu Espírito, que de Maria. Foi em função de Cristo e por obra do Espírito que Deus operou maravilhas em Maria. Maria nunca aparece voltada para si mesma, mas sempre no serviço aos outros, e sua presença é mais de silêncios que de palavras[13].
É de dentro das reflexões teológicas, escritas na Bíblia, que tentamos extrair os contornos históricos de Maria. Os grandes do tempo dela a desconheciam, mas o olhar misericordioso de Deus a tocava de modo especial.
As figuras femininas destacadas no Antigo Testamento, como Miriam, Ana, Rute, Judite, Ester, e outras, representam um coletivo, são imagens de mulheres e, ao mesmo tempo, imagens do Povo de Deus. Através de suas ações se revela o povo que luta e a força de Deus libertador que salva o seu povo. Pois bem, Maria de Nazaré, a Mãe de Jesus, está entre os dois Testamentos, o Antigo e o Novo. Ela, representante legítima de Israel, e portadora do novo Povo de Deus, é imagem do povo fiel, morada especial de Deus. Deus nasce de uma mulher. Com esta mulher, e com seu filho Jesus, começa um novo tempo na historia da humanidade. Deus, que já habitava na terra humana, é descoberto e amado na corporeidade humana[14].
São características históricas de Maria, segundo Boff[15]:
Ela é a virgem noiva – a virgindade, equiparada à viuvez, não constituía valor social. E Maria está comprometida com José conforme o costume judaico.
Ela é pobre – está clara nas cenas relatadas pelos evangelhos, nas quais ela aparece, a sua condição de pobreza, no sentido de indigência material causada pela exploração dos ricos. Lentamente, a pobreza foi ganhando também um sentido espiritual: Para Deus, os pobres e oprimidos estão em primeiro lugar na dimensão do Reino. Maria faz parte da multidão de pobres, e é totalmente aberta e disponível para a misericórdia e intervenção libertadora de Deus.
Ela é mãe - nos textos bíblicos, ela aparece mais como mãe de Jesus que como virgem Maria. Como mãe está presente nos momentos cruciais da trajetória de Jesus: a encarnação, o nascimento, a primeira visita ao templo, o começo da vida pública em Caná, no meio da multidão quando estava no auge da popularidade, no momento da morte, em Pentecostes. Mas, ela o deixa em liberdade para cumprir sua missão. Os novos laços que nascem da fé na missão de Jesus e na sua missão como seguidora de Jesus contam mais que os laços de sangue.
Ela é cheia de fé – Maria, que é Mãe de Deus e bendita entre todas as mulheres, é apresentada nos evangelhos como alguém que anda na obscuridade da fé. A vida vai tornando manifesto aquilo que era confuso. Ela passou pela perplexidade, mas nunca duvidou. A prima Izabel diz: “Feliz és tu que creste” (Lc 1,45). Nem tudo ela compreendia (Lc 1,50), mas assumia os caminhos misteriosos de Deus. Confiava (Lc 1,38), e sua fé crescia através da reflexão e meditação (Lc 1,26-38); sendo virgem descobre-se grávida, fica perturbada e tem medo. Mas, descobre a obra do Espírito Santo crescendo em seu ventre e não duvida; apenas pergunta como se fará isso, e aceita as realidades que não se vêem, pois, para Deus nada é impossível. Conforme a carta aos hebreus (Hb 11,1), esta é exatamente a dinâmica da fé: a antecipação das coisas que se esperam, a prova das realidades que não se vêem.
Ela é mulher forte – viveu uma vida de luta; era inocente e pura, mas viveu num mundo de pecado e de incompreensões. “Nazaré é a casa dos que crêem lutando. Dos que enfrentam corajosamente as dificuldades da vida em pleno abandono à Providencia”, diz Boff. Ela é uma personagem histórica que, nas profundezas do seu anonimato, concordou em ser tomada por Deus para a sua ação libertadora na historia da humanidade.
Só para reforçar os traços históricos de Maria, trazemos outros autores:
Maria é uma mulher pertencente aos setores populares da Galiléia, simples e pobre, em tudo participante da situação social, política e religiosa do seu povo. Como mulher, é duplamente pobre: no seu tempo e na sua terra, as mulheres sofriam uma espécie de condenação pelo simples fato de serem mulheres. Toda mulher estava destinada a ser serva de seu marido; era impedida de qualquer progresso cultural; não tinha voz na vida social, cultural e política[16].
Foi prometida a José, um humilde artesão, e o desposou (Lc 1,27). Deu à luz seu filho numa situação de sem-teto (Lc 2,7). Por ser pobre, no ritual de resgatar o filho primogênito, só pode apresentar no templo a oferta típica dos pobres (Lc 2,24). Seu esposo era um trabalhador comum. Ela viveu na Galiléia, uma província periférica da Palestina, no povoado de Nazaré, onde o povo ficava afastado dos grandes centros de decisão (Mt 4,15). Ela foi uma pessoa comum, que assumiu a vida simples do povo na luta pelo pão de cada dia[17].
Os relatos neotestamentários deixam claro que ela é uma mulher israelita, domiciliada em Nazaré e casada com um homem chamado José (Mc 6,1-4; Lc 4,16-22); fala-se de seus parentes. Ela é reconhecida como a mãe de Jesus, mas insiste-se em que José não era pai natural de Jesus, apesar das suspeitas sociais decorrentes desta afirmação. O ofício de Jesus, tékton (artesão, carpinteiro), comprova sua classe social pobre[18].
Pertence ao meio popular, na simplicidade e pobreza, ela está enquadrada no sistema político e sócio cultural dos tempos de Jesus: cumpre as leis do imperador (Lc 2,1-5); casa-se como uma boa israelita (Lc 1,27; Mt 1,18); leva o menino para circuncisão no oitavo dia (Lc 2,21); apresenta ao templo com a oblação dos pobres (Lc 2,22-24); faz peregrinação com sua família a Jerusalém por ocasião das festas da Páscoa (Lc 2,41)[19].
Os evangelhos sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas), tirando-se os relatos da infância de Jesus, trazem um fundo mais histórico de Maria[20].
1º - A nova família de Jesus: Jesus irrompe como um carismático, em sua missão messiânica, e alguns dizem que ele é um perturbado mental. Ele tem uma nova família: a nova fraternidade começa onde a pessoa humana se dispõe a realizar o projeto de Deus. Maria fica perplexa, mas ela, mais do que ninguém, entra no projeto salvador de Deus e se abre à total colaboração. Ela é grande porque faz a vontade de Deus, mais do que por sua maternidade física. Há uma contraposição entre o pai, José, e o Pai, Deus. Para Jesus não contam os laços físicos, mas aqueles da fé. Maria e José são convidados a transcender os laços do sangue para entrar na caminhada da fé, na dimensão messiânica do Reino. (Ver Mc 3,31-35; Mt 12,46-50; Lc 2,48-51; Lc 8,19-21).
Lc 11,27 traz a voz de uma mulher que se levantou da multidão e proclamou a dignidade da Mãe de Jesus. Mas, Jesus enfatizou o que era exatamente a sua mãe: a mulher que creu, e na qual devem inspira-se os de sua nova família, os membros do Povo de Deus. Sua nova família é constituída pelas mulheres e homens que com ele assumem o projeto do Pai. E Maria é exemplo nisto. Jesus socializa sua própria família nuclear, numa comunhão muito mais ampla do que a do sangue, na missão universal. A mãe representa nova fecundidade, as irmãs a nova comunhão, que não se limita à raça, ao sangue, à cor, à cultura, a poucos privilegiados, mas está aberta a todos. O jeito de ser Igreja nas CEBs tem clara esta consciência: a família nuclear amplia-se na nova comunidade, numa dimensão tão vasta como o coração de Deus. Vive-se uma nova maternidade: a de gerar o Jesus místico e comunitário na realidade de cada pessoa que aceita a comunhão com Jesus e com os irmãos[21].
2º - Maria é uma mulher simples: vendo a sabedoria de Jesus e os milagres por ele operados, as pessoas perguntavam: Por acaso ele não é o carpinteiro, filho de Maria...? Algo não se encaixa, porque ele é mulher pertencente ao povo humilde. O dado histórico é que Maria participava do anonimato geral das mulheres do judaísmo. (Ver Mc 6,3; Mt 13,55; isto está também em Jo 6,42).
3º - Maria é protótipo da nova pessoa humana, que ouve a Palavra de Deus e a põe em prática. Participar da vida de Jesus não é privilégio do sangue ou da raça, mas um convite a todos no plano da fé. Ela está junto de Jesus porque vive a fé. (Ver Lc 11,27-28).
As narrativas da infância trazem mais interpretação teológica do que fundo histórico. Elas representam uma teologia bem elaborada, mais tarde, já entre os anos 60 e 80 dC, sobre a realização das promessas do AT; sobre a dignidade de Jesus, sua filiação divina e seu caráter messiânico. Os cristãos já reconheciam a presença de Maria no meio da comunidade, assim como se explicita em At 1
,14. Lucas fala das recordações que ela guardava em seu coração (Lc 2,19.51). João diz que, depois da morte de Jesus, ele próprio a recebeu em sua casa e em sua missão (Jo 19,27). Certamente ela comunicou aos apóstolos os mistérios de sua própria vida e o conteúdo de suas próprias reflexões. O que há de histórico são os seguintes dados: a virgindade de Maria e seu noivado com José; a concepção virginal por obra do Espírito Santo; o nome Jesus, dado por Deus; a infância em Nazaré[22].
No envangelho de João, por duas vezes aparece a figura da “mãe de Jesus”: nas bodas de Caná (Jo 2,1-11) e no Calvário (Jo 19,25-27). Deixando para depois a reflexão teológica feita pela comunidade joanina, extraímos os dados históricos. Nas bodas de Caná vemos Maria como as pessoas comuns, participando de uma festa de casamento e preocupando-se com os embaraços dos outros.
Paulo escreveu que “quando chegou a plenitude do tempo, Deus enviou o seu filho. Ele nasceu de uma mulher...” (Gal 4,1-7). Aqui convergem escatologia e historia, antropologia e teologia. Tudo gira em torno da confissão de fé de que o Verbo se fez carne na corporeidade humana, corpo de homem e de mulher, na realidade da historia, e nos limites da historia. Deus enviou seu Filho nascido de uma mulher, e o Reino chegou, a nova criação já é realidade. À luz deste mistério, a nova comunidade de homens e mulheres, com seus sofrimentos e lutas, dores e alegrias, gera a cada dia o amor[23].
Mateus quer deixar claro que Maria deu à luz “sem que José a conhecesse”, isto é, por uma gravidez que não foi obra de José. Para Mateus, José é a síntese do antigo povo, chamado a novas núpcias para começar outra vez o amor, enquanto Maria é a mulher grávida de vida que simboliza a esperança virgem, o rosto do povo cheio de luz e o rosto de Deus que sempre renasce dos escombros da destruição[24].
Marcos toma a maternidade de Maria como referencia histórica para situar Jesus: ele é o carpinteiro que faz milagres, conhece a lei e os profetas, defende os pobres, e é acolhido por uns e rejeitado por outros, e chega a ser chamado de louco. Maria, sua mãe, participa deste ambiente de aceitação e rejeição, e na relação com Jesus supera o nível biológico, pois está entre os que fazem a vontade de Deus (Mc 3,35).
Lucas é o que escreve mais referencias a Maria. Na anunciação (Lc 1,26-38) ele mostra Maria entre as múltiplas manifestações da fidelidade de Deus para com o seu povo. Maria é o povo que se torna a nova arca da Aliança, nova morada onde Deus pode ser encontrado e amado. A visita de Maria a Isabel (Lc 1,40-45) é o encontro do velho com o novo, é o antigo povo judeu reconhecendo o novo Povo de Deus. O Magnificat, o cântico de Maria (Lc 1,46-55) é um canto de guerra: na historia humana, Deus combate pela instauração de um novo mundo de relações igualitárias e de profundo respeito a cada ser, um mundo onde Deus habita. A mulher grávida que dá à luz o novo é imagem de Deus que, pela força do seu Espírito, faz nascer homens e mulheres que vivem a justiça na amorosa relação com Deus e com os semelhantes. O cântico de Maria é o programa do Reino, o mesmo programa assumido por Jesus na sinagoga de Nazaré (Lc 4,16-21), o parto de Maria (Lc 2,7) significa o nascimento de Deus na humanidade. A profecia de Simeão (Lc ,34-45) dá a Maria um alcance para todos os tempos: uma espada, a contradição, continua atravessando o coração dos pobres e dos que lutam pela justiça de Deus[25].
O livro dos Atos mostra Maria presente nas raízes da primeira comunidade cristã, perseverante na oração e unida aos discípulos às discípulas do seu filho. Ela é mãe, irmã, companheira, discípula e mestra do movimento de Jesus, cuja base sólida é o anuncio da presença do Reino no meio dos pobres e excluídos[26].
O evangelho de João apresenta Maria em duas ocasiões: nas bodas de Cana (Jo 2,1-11), onde Jesus transforma a água em vinho, seu primeiro milagre. Maria gesta e dá à luz a fé da nova comunidade messiânica; ela inaugura o tempo do povo novo, a comunidade do Reino. A pobre e depreciada Caná da Galiléia torna-se lugar da manifestação da gloria de Deus. E, ao pé da cruz (Jo 19,25-27) Jesus lhe entrega o discípulo amado como filho. Maria, no marco das grandes figuras femininas e maternas do Antigo Testamento, como Débora, a Mãe dos Macabeus e outras, aparece como a mãe da nova comunidade dos seguidores de Jesus. Em João, Maria está no centro do acontecimento da salvação trazida por Jesus Cristo; ela é símbolo do povo que acolheu a mensagem do Reino e a plenitude dos tempos messiânicos[27].
No cap. 12 do Apocalipse, Maria é identificada como a mulher de fé humilde, batalhadora no meio do povo que sofre e acredita no salvador crucificado, sem perder a esperança: uma mulher vestida de sol e coroada de estrelas, com dores de parto. Lutando contra o dragão. Sua vocação é ser esposa do Cordeiro e alcançar a vitória, é ser a Nova Jerusalém onde finalmente se reunirão todos os que cumprem os mandamentos de Deus e guardam o testemunho de Jesus. Ela representa o Povo de Deus, perseguido e martirizado. Também é a figura de uma Igreja perseguida pelas forças do anti-Reino e pelos poderosos e opressores. O sinal que aparece no céu e na terra é o novo Povo de Deus, e Maria é o rosto desse povo. Os descendentes da mulher Eva receberam a graça de triunfar sobre a serpente através da descendência da mulher Maria[28].
Nos Atos dos Apóstolos ficou recolhida a última recordação de Maria histórica: sua vivencia com as discípulas e os discípulos imediatamente depois da morte de Jesus. “Todos eles rezavam constantemente na mais intima união, com algumas mulheres, com Maria, a mãe de Jesus, e com os irmãos dele” (At 1,14).
Uma antiga tradição cristã conta que Maria foi viver os últimos anos de sua vida em Éfeso, com o apóstolo João, a quem Jesus, na cruz, entregara sua mãe. Historicamente, ela esteve presente na Igreja que dava seus primeiros passos, e acompanhou o começo da evangelização. Depois da ascensão de Jesus, os discípulos e discípulas, enquanto esperavam a vinda do Espírito Santo, reuniram-se em oração no cenáculo com Maria, a mãe de Jesus. Nessa fase de interiorização e socialização da mensagem de Jesus, ela era a mais fiel referencia para o seguimento de Jesus. Sua presença na Igreja nascente era referencial e testemunhal, por ser ela a primeira discípula de Jesus, por ter ela os traços fundamentais do Jesus histórico e a força viva e encarnada de tudo o que ele ensinou. Maria é a expressão mais concreta e vivencial da Igreja[29].

Malcriação
Nancy Cardoso Pereira


Da primeira vez
Que o Filho respondeu atravessado
Ela engoliu seco e
Guardou tudo no coração.
Da outra vez
Ela mandou recado:
Quem é minha mãe? Quem são meus irmãos?
Ela disse bem alto
Num tom nada evangélico:
Filho da Mãe!

QUESTÕES PARA APROFUNDAR:
1º Qual é, em síntese, o perfil histórico de Maria?
2º De que maneira ela testemunha a ação salvífica de Deus na historia humana?


II – A MARIA DA IGREJA MAGISTERIAL E A TEOLOGIA

1.A Magnificação teológica de Maria

Falamos de Miriam de Nazaré, e Nazaré representa a periferia do mundo. Esta mesma Miriam, Maria, mulher do povo dos pobres que viveu na historia, passamos a olhar como alguém que “vive em Deus”.
No contexto do povo latino-americano empobrecido e crente, no qual ganhou enraizamento a Teologia da Libertação, tem emergido dos pobres um jeito novo de ler a bíblia, confrontando os textos com a vida de hoje e perguntando sobre o que não foi escrito, o que se perdeu ou, até, num contexto patriarcal, se quis omitir voluntariamente.nos textos no Novo Testamento, é importante considerar também o que não se diz sobre Maria, e que constitui realidade ou acontecimento[30].

Ave Maria
Frei Betto


Ave Maria!
Grávida das aspirações de nossos pobres,
O Senhor está contigo.
Bendita és entre os oprimidos.
Benditos são os frutos de libertação de teu ventre.
Santa Maria, mãe latino-americana,
Roga por nós, para que confiemos no Espírito de Deus.
Agora que nosso povo assume e luta pela justiça
E na hora de realizá-la com liberdade
Para um tempo de paz.
Amém.

Metodologicamente, o estudo da “Maria da fé pascal”, na perspectiva da libertação, tem que seguir o conceito de Reino de Deus, cujos sinais mostram a salvação na historia humana. Assim, o ser e o agir de Maria poderão ser vistos dentro das diferentes imagens que o Reino de Deus assume, na Bíblia, na tradição da Igreja, nas tradições do povo; também poderemos perceber a “paixão” de Maria pela justiça de Deus em favor dos pobres, e recuperar a força do Espírito nas mulheres de todas as épocas[31].
A Mariologia não se formula somente sobre os dados históricos, mas é, sobretudo, um estudo a partir da reflexão de fé da comunidade cristã à luz do Ressuscitado. Perplexa, a Igreja descobriu que aquela anônima mulher do Povo de Deus, que se sentiu serva do Senhor e reconheceu o olhar divino sobre a sua pequenez (Lc 1,38-48), é a cheia de graça, a bendita entre todas as mulheres (Lc 1,30.42). entretanto, nesta magníficação teológica é preciso também considerar a Maria histórica, que testemunha o caminho escolhido por Deus entre os pobres e excluídos, nas margens da sociedade, para ali operar maravilhas. No mistério da Encarnação, o engrandecimento está no humilde, no pequeno e sem aparências. Boff afirma:

A mariologia de exaltação que não retorna à historia de Maria, mas se atém aos seus próprios discursos grandiloqüentes, perde seu caráter histórico-salvífico; não fala da Maria da historia, daquela que foi a mãe de Deus, o sacrário real do Espírito Santo, mas fala de uma nova mitologia cristã elaborada fantasticamente a propósito de Maria. O critério de toda verdade teológica cristã – que se deixa transformar num puro discurso mitológico – é sua referencia aos acontecimentos realizados por Deus dentro da história[32]...

2. A EVOLUÇÃO DA MARIOLOGIA NA IGREJA PRIMITIVA

MARIA aparece poucas vezes nos escritos bíblicos do Novo Testamento. E na maior parte das vezes em silencio. Esses poucos fragmentos não se referem diretamente a ela, mas estão em função de seu filho Jesus e do Espírito Santo que vem a ela:

MT 1 e 2
Mc 3,20-21. 31-35; 6,1-4
Lc 1 e 2; At 1,14
Jo 2; 19,25-27; Ap 12,1

Entretanto, como as “sete jóias” que a adornam, essas referencias bíblicas exprimem a importância de Maria e justificam o imenso interesse da Igreja pela Mãe de Deus[33].

1º - a Kechanitoomenee, “cheia de graça” – Lc 1,28
2º - a “bendita entre todas as mulheres” – Lc 1,42
3º - a”Mãe do meu Senhor” – Lc 1,43
4º - “Aquela que acreditou” – Lc 1,45
5º - aquela que “todas as gerações proclamarão bem-aventurada” – Lc 1,48
6º - a mulher na qual o Onipotente fez “grandes coisas” – Lc 1,49
7° - a “Mulher”, a Nova Eva – Jo 2,4; 19,26; Ap 12,1.

As poucas e profundas afirmações sobre Maria, escritas no Novo Testamento, foram fruto da reflexão da Igreja nascente, na fé pascal. Aos poucos foram se ampliando e se aprofundando.
O evangelho de Marcos é o primeiro evangelho escrito. A comunidade de Marcos ainda ignorava a grandeza de Maria. Apenas a via no sentido privativo, reduzia à sua função biológica e social. Maria tem apenas um nome, ainda não tem um perfil definido e nem relevância teológica. Ela permanece escondida em seu clã, como mãe do Filho de Deus por seus laços de sangue. Ela só tem a função de gerar o Filho de Deus. Sua grandeza sobrenatural permanece oculta. “Quem é minha mãe?” (Mc 3,33). “Não é ele o filho de Maria?” (Mc 6,3). Para Marcos aparece como ignorante do mistério de Jesus.
O apóstolo começa a fazer uma referencia a Maria, mas ainda indireta (Gl 4,2). O grande objetivo é o Kerygma do Ressuscitado. A luz nova e forte de Cristo toma conta, de maneira que a figura de Maria fica na sombra. Ela continua só na função de gerar o Filho de Deus (Gl 4,4).
Como se vê, bem no inicio do Cristianismo, o “mistério de Maria” ainda estava invisível.
Mas, nas comunidades de Mateus e Lucas, Maria passa a ser vista plenamente dentro do plano da salvação.
No evangelho de Mateus, escrito mais ou menos no ano 70, Maria é a Mãe virginal do Messias, segundo as profecias. Ela está inteiramente na relação com o Messias. Fazendo parte da genealogia, ela emerge como uma “personagem” importante na historia da salvação; tem uma relação privilegiada a até exclusiva com Cristo. Pela sua virgindade, é testemunho e sacramento do Messias, de sua origem e de sua natureza divina. Entretanto, em Mateus, Maria ainda não possui um “rosto” próprio, uma personalidade autônoma. É mais “mãe funcional” do Messias que mãe pessoal.
Para Lucas, ela já é uma “personalidade” consciente e livre, com uma consciência e um rosto próprio, do ponto de vista psicológico e teológico. O evangelho de Lucas teve sua redação final por volta do ano 80. A comunidade de Lucas já a vê como mulher responsável, autônoma, determinada, com um rosto, um perfil, um caráter, uma identidade própria. Já de inicio, mostra-a a frente com Cristo, numa relação polarizada e tensa, mas totalmente acolhedora.
Maria, em Lucas, é um “ser para o outro”, que é Cristo, mas com pleno consentimento de sua liberdade. Ela é toda de Cristo, não por natureza ou destino, mas por decisão pessoal. Portanto, Maria é uma figura destacada e bem personalizada,bem individualizada. É pessoa que caminha, cresce e se determina.
O livro dos Atos faz uma única referencia a Maria, em At 1,14. Entretanto, esta referencia aparece num contexto e num modo muito significativos.
Na comunidade joanina, a Mariologia entra numa fase de aprofundamento. Para João, cujo evangelho foi escrito por volta do ano 90, a Mãe de Jesus é uma figura de grande relevância teológica. Ela é a nova “mulher”, a mediadora da fé (em Caná), a Mãe da comunidade dos fiéis (aos pés da cruz) e a Mulher cósmica, figura da Igreja e da nova criação (Ap 12). Maria é mais que uma personagem e até mais que uma personalidade: ela é uma “personalidade corporativa”, cujo significado vai além da sua pessoa individual. Ela possui uma imensa irradiação simbólica, pois representa a Comunidade eclesial, a Humanidade salva e os Cosmo redimido.
Portanto, a Mariologia de João é bem mais profunda; é uma “Mariologia simbólica”, que transcende sobremaneira à Maria de Nazaré.
Os textos bíblicos garantem à Mariologia o seu espaço próprio de mistério.

Aprofundamento:

Mariologia de Marcos e de Paulo – texto de Clodovis Boff. Indrodição à Mariologia. Petrópolis: vozes, 2004, p. 33-40
Mariologia de Mateus – Idem, p. 40-45
Mariologia de Lucas – Idem, p. 45-71
Mariologia de João – Idem, p. 71-91

3. A EVOLUÇÃO DOS DOGMAS MARIANOS

A Igreja definiu alguns dogmas marianos, como verdades de fé. Primeiramente, aqueles dogmas sobre a maternidade pascal de Maria[34].
Entretanto, é preciso ter consciência de que, ao estudarmos o mistério de Maria na Igreja, no campo da Teologia Mariologia, estamos no campo da razão. Mas, o mistério de Maria pertence sobretudo ao campo do coração e da liberdade humana; portanto, não pode ser imposto sem uma “fineza” teológica. Os dogmas que a Igreja definiu como verdades de fé têm que ser visto mais como dons para se oferecer do que dogmas para se impor. Eles devem ser vistos como jóias preciosíssimas que valem por sua beleza e pelo encanto que produzem. São como presentes muito especiais[35].
Na Mariologia, é importante distinguir “o que a fé exige” do que “ a devoção permite”. O que está definido nos dogmas é o limite mínimo, exigido de todos os cristãos. A fé tem suas exigências dogmáticas, válidas para todos. Mas, a devoção é a amplidão aberta e livre para os vôos apaixonados do amor, e ela vale para a escolha de cada um. A devoção amorosa não pode ser imposta e também não pode ser impedida. Ela tem suas liberdades[36].
A devoção a Maria teve uma primeira elaboração no século III, mas está constantemente sendo elaborada. Ela encarna, de modo privilegiado, o tempo de Deus dentro do tempo das pessoas humanas. Ela é a Mulher que nasceu no Antigo Testamento, acompanhou o tempo de Cristo, esteve presente no inicio do tempo da Igreja e inaugura o tempo da humanidade totalmente redimida e divinizada em corpo e alma no céu[37].
O concilio de Éfeso (431) definiu-a como Theotokos, Mãe de Deus, pondo um ponto final nas discussões e combatendo o reducionismo nestoriano. Passou a fazer parte da fé da Igreja que Maria é mãe de Jesus Cristo, na unicidade do seu ser humano-histórico e divino. Desde o século IV ela é reconhecida como sempre virgem. A partir do Sínodo de Latrão (649), a Igreja diz que ela foi virgem antes do parto, no parto e depois do parto. No sentido da fé cristã pascal, a virgindade é uma exclusiva dedicação, de corpo e alma, às coisas do Senhor (1Cor 7,32-34), e a maternidade é uma resposta de fé. Lentamente, a Igreja tomou consciência da concepção imaculada de Maria. O dogma da Imaculada Conceição foi definido por Pio IX, em 1854, e Pio XII declarou como dogma, em 1950, que ela foi assunta ao céu em corpo e alma. Estes dois dogmas inserem-se no universo pascal do Cristo ressuscitado. Paulo VI proclamou-a Mãe da Igreja[38].
Codina diz que os dogmas marianos manifestam o Deus sempre maior, que esteve escondido no ventre de Maria. O dogma do Concilio de Éfeso, de que Maria é a Theotokos, mãe de Deus, estabelece uma vinculação clara de Maria não só com Jesus, mas com toda a Trindade. O Concilio Vaticano II diz que ela é a Mãe do Filho de Deus e, por isso, filha predileta do Pai e sacrário do Espírito Santo que desceu sobre ela. Na tradição da Igreja do Oriente, a imagem de Maria está unida à de Jesus: a união física de Mãe e Filho expressa a comunhão entre Deus e a humanidade. A imaculada representa o triunfo da graça sobre o pecado, e a Assunção o triunfo da vida sobre a morte[39].
O dogma da Imaculada Conceição diz que Maria foi presenteada e isenta de toda mancha de pecado original. Pecado original é a perversão que está na raiz da vida, aquela situação originária que gera incapacidade de amar e fechamento da pessoa sobre si mesma. Daí vem toda injustiça pessoal e social. Prevendo a obra libertadora de Jesus Cristo, Deus de antemão preservou Maria de toda mancha do pecado original: concretizou nela a humanidade nova. Deus preparou uma mulher, toda santa e pura, para ser seu receptáculo. Maria foi preparada para ser assumida pelo Espírito Santo. Nela, o feminino repleto da divindade alcança sua plenitude. Ela era filha da terra, uma pessoa humana normal que sentia as diferentes paixões da vida, que enfrentou os problemas do seu meio, mas, por graça de Deus, tinha uma força interior que a fazia, santamente, dimensionar tudo a ponto de ser plenamente filha de Deus, irmã de todas as pessoas humanas e plenamente livre diante do mundo[40].
Entretanto, o que se realizou em Maria propõe-se a se realizar em todos nós. Também nós seremos purificados, viveremos totalmente para Deus, seremos totalmente irmãos uns dos outros e plenamente livres para o mundo. Maria concebida sem pecado é a culminância da humanidade, o coroamento de Israel, a humanidade reconciliada e harmoniosa, o que seremos afinal. Ela é o ponto de chegada, a plenitude da historia. Ela antecipa o que seremos[41].
Maria imaculada, no profetismo de sua vida e na sua assunção, é sinal e concretude da liberdade que Deus realiza com nossa participação. Na Imaculada identificamos o ideal de plenitude, de libertação plena de tudo o que é origem e fonte de opressão. Desde o pecado pessoal até as estruturas injustas; a dignidade da pessoa humana no sentido original da criação. Ela inaugura a experiência de salvação, e a vida humana em fraternidade[42].
A assunção ao céu de corpo e alma aponta a glória de Maria na perspectiva da plenitude do Reino. No seu corpo glorioso,a criação maternal começa a participar do corpo ressuscitado de Cristo (LG 69)[43]. “A mãe de Deus, já glorificada no céu em corpo e alma, é imagem e primícia da Igreja que há de atingir a sua própria perfeição no mundo futuro” (LG 68). “Se a vida é chamada para a vida e não para a morte, então a mãe do autor da vida, o templo no qual entrou o princípio de toda a geração, deveria mais do que qualquer outro, participar do mistério da vida”[44].
“A virgindade é o símbolo da fé que acolhe o dom gratuito de Deus: a vida e a salvação”[45].
A virgindade perpétua de Maria é o começo da humanidade divinizada. No Antigo Testamento, a virgindade não possuía nenhum valor particular;pelo contrário, provocava desprezo porque equivalia à esterilidade.é neste contexto que se situa a virgindade biológica de Maria: não é nenhum valor em si, mas sim empobrecimento desprezado pelos que a cercam, por isso ela canta: “Deus olhou a baixeza de sua serva” (Lc 1,48). É uma virgindade na estrutura da Kénosis de Jesus, sua humilhação e esvaziamento de si mesmo (Fil 2,5-11), pequenez, motivo de desprezo. Esta atitude de Maria permitiu a Deus nascer, primeiro em seu coração, depois em seu ventre. Não se trata de uma virtude moral, e sim teologal: ela vive na pura fé em Deus, despojada de toda auto-afirmação e de toda ambição, totalmente serva e dom de si a Deus, entregue aos desígnios do Mistério[46].
Tomamos a interpretação da grande Tradição da Igreja, desde os Santos Padres. A Igreja proclama que ela foi virgem antes do parto, aludindo ao novo começo do mundo, ao emergir do novo Adão: Deus toma a iniciativa e introduz o começo de uma nova humanidade, finalmente liberta do pecado e da morte. Proclama a virgindade no parto, aludindo ao nascimento de Jesus conforme sua natureza humano-divina. O nascimento de Jesus foi humanamente verdadeiro; Maria, plenamente mulher, teve dor e sentimentos de mãe, mas assumia e integrava tudo em Deus, perpassada pela graça de sua maternidade divina. Proclama a virgindade depois do parto, aludindo à sua dedicação total a Cristo e ao Espírito. O casal Maria e José encontravam-se num mistério maior que o mistério do encontro amoroso entre homem e mulher. A virgindade de Maria é total disponibilidade e acolhida da ação salvífica de Deus. Longe de diminuir sua feminilidade, eleva-a e a transfigura numa fecunda maternidade[47].
A teologia do Novo Testamento re-valoriza o feminino e a maternidade. A Eva, transmissora da vida, opõe-se Maria, que além de transmitir a vida também transmite a salvação. A mulher é colocada no centro da obra de Deus, e é por seu consentimento que o Messias chega à terra (Gal 4,4; Lc 1,38). À maternidade natural une-se a maternidade espiritual: ela é mãe de toda a humanidade, e mãe da Igreja[48].
Maria tem uma relação especial com a Igreja. A vocação fundamental da Igreja é, dentro de todas as contradições históricas, viver a graça divina, atualizando para si e para o mundo a libertação trazida por Jesus, e realizando o ser novo inaugurado por Jesus e por Maria. Esta vocação só foi cumprida plenamente por Maria: Na força do Espírito ela gerou Cristo e continua a gerar os cristãos, irmãos de Jesus Cristo; suscita vida nova, ajuda a construir a nova humanidade[49].
A mãe de Jesus e da Igreja, na sua vocação de mulher contemplativa, ativa e apostólica, “simboliza e realiza em plenitude a vocação de Israel. Ela personifica o povo, especialmente a comunidade dos pobres, e fala como a escolhida em beneficio de todos, dando graças em nome de todos em seu cântico, que é um florilégio dos profetas e dos salmos”[50]. Maria é a encarnação da Igreja: a comunhão entre o humano e o divino. Os Padres da Igreja meditaram longamente sobre a relação entre Eva e Maria, entre Maria e o batismo. Em Maria está a Igreja misteriosamente presente[51].
Maria é a aurora, o advento da evangelização (EN 81; Puebla 303).
Ela é missionária, porque foi a portadora da semente inicial do Reino, porque viveu os valores do Reino com maior intensidade e simplicidade, porque acompanhou de perto Jesus e acompanhou de perto a Igreja nascente. Identificou-se com seu filho e assumiu sua missão salvífica como centro de sua vida. Ela é caminho para Cristo, e nos convida a segui-lo através de uma nova comunhão, na vida em comunidade, no profetismo e na missão. Por isso, ela é o sinal missionário mais claro da presença do Reino no meio do povo[52].
A Igreja latino-americana, na fé do evangelho, busca conjugar uma libertação humana e evangelizada com uma evangelização libertadora[53].

Oração à Virgem da Libertação
D. Helder Câmara

Maria, mãe de Cristo e mãe da Igreja
Ao preparar-nos para a missão evangelizadora
Que nos cabe continuar, alargar e aprimorar,
Pensamos em ti.
Mas de modo especial pensamos em ti
Pelo modelo perfeito de ação de graças
Que é o hino que cantaste, quando tua prima,
Santa Isabel, mãe de João Batista,
Te proclamou a mais feliz dentre as mulheres.
Não parastes em tua felicidade,
Pensaste na humanidade inteira.
Pensaste em todos.
Mas assumiste uma clara opção pelos pobres,
Como teu Filho faria depois.
Que há em ti, em tuas palavras, em tua voz,
Que anunciais no Magnificat
A deposição dos poderosos e a elevação dos humildes,
O saciamento dos que tem fome
E o esvaziamento dos ricos,
E ninguém ousa julgar-te subversiva
Ou olhar-te com suspeição?;;;
Empresta-nos a tua voz, canta conosco!
Pede a teu Filho que em todos nós
Se realizem, plenamente, os planos do Pai!

Vale encenar esta parte considerando as orientações de Paulo VI, na Marialis Cultus:
É preciso corrigir certas imagens que temos de Maria, que não condizem com a sua imagem que está no Evangelho e nem com os dados doutrinais elaborados num sério e lento trabalho de explicitar a Palavra revelada. É normal que, ao longo da historia, Maria como mulher nova e perfeita cristã, como virgem, esposa e mãe, foi sendo vista com os sentimentos impregnados dos diversos marcos sócio-culturais, conforme as categorias e os modos de cada época. A Igreja se alegra por ver que a piedade mariana continua por tanto tempo, e sempre cresce. Mas, não fica presa aos esquemas representativos das diversas épocas nem às concepções de culto são perfeitamente válidas para todas as épocas e civilizações.
Paulo VI chega a dizer:
“Antes de tudo, a virgem Maria foi proposta sempre pela Igreja à imitação dos fiéis não precisamente pelo tipo de vida que ela levou e, muito menos, pelo ambiente sócio-cultural em que se desenvolveu, hoje em dia superado em quase toda parte, mas porque em suas condições concretas de vida ela aderiu total e responsavelmente à vontade de Deus; porque acolheu a palavra e a pôs em prática; porque sua ação esteve animada pela caridade e pelo espírito de serviço; porque foi a primeira e a mais perfeita discípula de Cristo: isto tem valor universal e permanente”[54].

III – A MARIA DA DEVOÇÃO DO POVO

“Na dogmática popular a intimidade maior é com Maria”, dizem as teólogas Ivone Gebara e Maria Clara Bingemer:

...os pobres, de uma maneira geral, reconhecem o valor de Jesus, o apreciam, têm presente os fatos mais importantes da sua vida, mas para eles Maria parece ter uma importância vital muito maior. Embora se conheçam poucos dados sobre sua vida, ela não deixa de ser a Mãe, a doçura, aquela a quem podemos sempre recorrer, aquela que entende as nossas aflições e sofrimentos, aquela que nos consola e protege[55].

1.A devoção mariana na historia da América Latina

Gonzalez Dorado lembra que inúmeros testemunhos nos mostram como os conquistadores eram devotos da Virgem Maria, e trouxeram aqui em nosso Continente a sua devoção. Cristovão Colombo era tão devoto que no seu estandarte estavam impressas as imagens de Jesus e de Maria. Ele carregava no peito uma corrente de ouro com a imagem de Nossa Senhora com seu Filho nos braços, e a tinha como sua advogada.
A Maria que os missionários conquistadores trouxeram aqui vinha da religiosidade popular luso-hispânica, expressa em imagens e devoções ocidentais, e tinha as características da Contra reforma. Ao chegar às novas praias, ela passou a ser caracterizada como a “Conquistadora”. Transformaram-na em uma Virgem Maria incorporada à empresa que conquistava e colonizava as terras “descobertas”, seguindo a tradição medieval de “reconquista”. Os missionários, tentando suavizar esse termo “reconquista”, que era das Cruzadas, chamavam de “conquista espiritual”. Sob o nome de “a Conquistadora”, surgiu uma outra Mariologia, uma ambígua teologia mariana, muito mais ambígua para os indígenas oprimidos e massacrados[56].
A fé mariana dos espanhóis e dos portugueses conquistadores, durante todo o período colonial, era confirmada a cada “milagre” de vitória dos grandes na dominação dos pequenos. Podemos ilustrar com um testemunho, entre tantos. Em 1517, o capitão Francisco de Cortés chefiava uma difícil batalha contra os indígenas:

O capitão mandou tirar os estandartes reais e os desfraldou, e além disso, mais outro de damasco branco e carmesim com uma cruz no verso e uma inscrição na orla que dizia assim: ‘Nesta venci e quem me carregar, com ela vencerá’. E do outro lado estava a imagem da Conceição Puríssima de Nossa Senhora e com outra inscrição que dizia: Maria, Mater Dei, ora pro nobis, e ao descobri-la e levantá-la alto, estando de joelhos, com lágrimas e devoção lhe suplicaram os aflitos espanhóis que fossem libertados de tantos inimigos, e no mesmo instante o estandarte se encheu de resplendores e infundiu no exercito valor e coragem, e foram marchando ao som das caixas e dos clarins e, chegando perto do povoado, os inimigos se dividiram ao meio em dois grupos, e um deles se colocou do lado da serra e o outro do mar que estava perto, e se dividiram ao meio... Sem dar importância às suas bravuras, os cristãos foram avançando com algum cuidado e quando chegaram bastante perto dos inimigos, puseram à mostra os estandartes que traziam, fazendo-os tremular diante da Cruz e da Virgem e... nesta ocasião o estandarte de Nossa Senhora se encheu de mais esplendores, e assim que os índios os viram se juntaram e, prostrados, trouxeram suas bandeirinhas e as puseram aos pés do Padre Frei Jaun de Villadiego, santíssimo sacerdote e ancião que tinha nas mãos o estandarte da cruz, em cuja mão esquerda ia o Capitão Francisco Cortés com toda sua cavalaria. Trinta capitães, caciques e senhores daquela província se renderam à cruz e imagem, por se terem enchido de resplendores sem nenhuma outra arma... Este sucesso foi no sábado do ano de 1517[57].

Qual a teologia que aparece neste fato? Maria é a Mãe de Deus e Imaculada Conceição, e é nomeada logo depois da Cruz. É apoio dos aflitos, no caso, os espanhóis conquistadores que recorrem a ela, rezando com lágrimas e devoção. Ela responde com um milagre que “infundiu no exercito coragem e valor” e fez os espanhóis derrotarem os índios sem necessidade de armas.
Maria Conquistadora, na fé dos colonizadores, é aquela que apóia todo o seu sistema de dominação, todas as suas ações. É invocada por eles como advogada e Rainha das vitórias, mas é uma Maria deteriorada, representante de uma postura ocidentalista-dominadora – racista – capitalista – escravista criminosa, denunciada pelos pregadores – profetas da época, como o Frei Antonio de Montesinos.
Como se explica tamanha devoção a Maria, a manifestação feminina de Deus, usada como legitimação de tanto massacre, de modo especial contra a mulher, neste Continente invadido e roubado?
É bom salientar que, nessa época de conquista empreendida pela Cristandade, estava ocorrendo uma explosão machista do culto à Virgem Maria em algumas parte do Ocidente. Maria era reduzida a um modelo de “feminilidade ideal”, exemplo de modéstia, aceitação, passividade, resignação, submissão, humildade, virtudes entendidas como “próprias da mulher”[58].
A primeira geração da Conquista foi marcada por uma extrema violência religiosa, que destruiu a cultura em nome da pureza e da verdade do cristianismo. Os conquistadores estavam convencidos de que Maria estava sempre do seu lado, contra os indígenas, os quais consideravam infiéis, por isso empreendiam o massacre dos nativos como uma guerra santa para atraí-los à fé cristã, sob a proteção da Virgem. A partir da segunda geração, depois de tento genocídio e etnocídio, o culto a Maria foi sendo integrado nos costumes da América espanhola e portuguesa. A imposição do cristianismo sempre esbarrou com problemas das diversas religiões aqui existentes, que eles consideravam idolatria; por isso insistiram em substituir a deusa mãe dos cultos antiqüíssimos por Nossa Senhora. Mas, surgiram diversas formas de integração sincrética das divindades com o cristianismo, da parte dos indígenas e dos negros. O santuário de Tepeyac (Guadalupe) é um exemplo dessa integração[59].
No período das guerras de emancipação, no século XIX, em repetidas ocasiões a Virgem Maria foi vinculada aos exércitos e chamada com os títulos de “Generala” ou de “Marechala”. A libertação e o triunfo eram simbolizados militarmente no poder das armas[60]. Principalmente na América espanhola, a devoção à virgem Maria foi uma das armas nas batalhas pela independência. Entretanto, ela teve um papel tão importante quanto na época colonial, e em toda a América Latina a devoção à virgem continuou tão popular como nos tempos da Colônia. Alem das muitas ermidas, capelas e oratórios erguidos em sua honra, Maria foi a protetora de muitas lutas populares de libertação, como a dos escravos. Muitos movimentos de camponeses no Brasil, na Bolívia e no Peru, tiveram como motor de luta a devoção à virgem que luta com eles pela sua libertação. Recentemente, a luta dos sandinistas contra o regime de Somoza, na Nicarágua, foi movida pela devoção à Puríssima[61].
É interessante olhar as imagens de Maria nas diferentes classes sociais, na história do Brasil[62].

A devoção Mariana dos conquistadores e colonizadores:

A milagrosa Medianeira: Esta imagem expressava gratidão pelo sucesso e admiração dos colonizadores pelas maravilhas da terra “descoberta”. Também Nossa Senhora das Maravilhas estava na Bahia, em 1550.
Nª Sra. da Esperança: era o nome de uma das caravelas de Cabral, em 1500.
Nª Sra. da Graça foi uma imagem “aparecida” de Caramuru, na Bahia em 1530.
Nª Sra. da Conceição e Nª Senhora da Ajuda estavam na frota de Tomé de Souza, em 1549.
Também tinham as imagens de Nossa Senhora guerreira, na colonização radical:
Nª Sra. da Vitória expressou a vitória sobre os índios, em 1555.
Nª Sra. da Vitoria no rio Paraguaçu expressou a vitória de Mem de Sá sobre o “gentio”, em 1559.
Nª Sra. dos Prazeres, no Recife, expressou a expulsão dos holandeses nos Montes Guararapes.
Nª Sra. do Rosário: os dominicanos levaram esta imagem ao Congo, na ocupação da África, introduzido a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário em 1570. Os capuchinos obtiveram licença para propagar esta devoção no Brasil. Era a imagem presente nos navios negreiros, símbolo da redução dos africanos à religião católica.
E tinham a Aristocrática:
Nª Sra. do Patrocínio é a branca senhora da casa grande, que está no mundo familiar junto com são José de Botas (símbolo do senhor de engenho) e Santa Ana que ensina o catecismo a Nossa Senhora. A Sagrada Família está nas palavras de Vieira:

Mais inveja devem ter vossos senhores às vossas penas, do que vós aos seus gostos, a que servis com tanto trabalho. Imitai o Filho e a Mãe de Deus e acompanhai-os com São José nos mistérios dolorosos, como próprios da vossa condição e da vossa fortuna, baixa e penosa nesta vida, mas alta e gloriosa na outra. No céu cantareis os mistérios gozosos e gloriosos com os anjos, e lá vos gloriareis de ter suprido com grande merecimento o que eles não podem, no contínuo exercício dos dolorosos[63].

A devoção mariana da instituição eclesiástica:

Nª. Senhora da Conceição representa o triunfo da restauração portuguesa após o domínio espanhol de 1580 a 1640. Portugal consagrou suas colônias a Nª. Sra. da Conceição a 25 de março de 1646. Ela é a senhora dos brancos e representa o mundo triunfal, no ciclo mineiro do Brasil, com a descoberta das minas de ouro, prata e diamantes.
Nª. Senhora do Rosário, cuja devoção foi propagada por Frei Antonio do Rosário em 1702, também se identifica com a instituição eclesiástica.

A devoção mariana dos pobres: a Virgem Morena

Nª Senhora Aparecida vem da tradição nascida em 1717. A pequena imagem “pescada” no rio Paraíba do Sul foi conservada pelos pobres de 1717 até 1745, quando o vigário de Guaratinguetá lhe construiu uma capela. Representa a mesma tradição latino-americana dos pobres em Tepeyac, com a imagem de Nª Senhora de Guadalupe, que foi largamente difundida no Brasil no período da união das coroas espanhola e portuguesa (1580 – 1640). Em Olinda e Salvador há igrejas dedicadas a Nª. Sra. de Guadalupe.
Após 1640, num movimento destinado a “descastelhanizar” Portugal e o Brasil, o nome “Guadalupe” foi substituído pelo de “Conceição”, mas a imagem e seu significado permaneceram. A estátua de Nossa Senhora Aparecida pode ser a cópia, em barro, do retrato miraculoso da aparição do Tepeyac[64]. GUADALUPE – APARECIDA significa a aliança de Maria com os pobres que vivem à margem do sistema.
Apesar de todas as contradições na implantação da devoção mariana neste Continente, Virgílio Elizondo diz:
“É um fato inegável que a devoção a Maria é uma característica do cristianismo latino-americano mais popular, persistente e original. Ela está presente nas próprias origens do cristianismo do Novo Mundo. Desde o inicio, a presença de Maria conferiu dignidade aos escravos, esperança aos explorados e motivação para todos os movimentos de libertação”[65].
Gonzalez Dorado mostra um processo que vai da Maria Conquistadora à Maria Libertadora. Na matriz religiosa e cultural da América Latina, os momentos de mudança evidenciam o novo rosto mestiço de Maria, expresso principalmente em três momentos: Guadalupe (México), Copacabana (Bolívia) e Aparecida (Brasil)[66].
São alguns dos muitos títulos na devoção mariana popular na América Latina[67]:

ARGENTINA: Nossa senhora de Luján (ou Nossa senhora de Itati)
BELIZE: Nossa senhora de Guadalupe
BOLÍVIA: Nossa senhora de Copacabana (ou de Socaván)
BRASIL: Nossa senhora Aparecida
COLOMBIA: Nossa senhora de Chinquiuira
COSTA RICA: Nossa senhora dos Anjos
CUBA: Nossa senhora da Caridade do Cobre
CHILE: Nossa senhora do Carmo de Maipu
EQUADOR: imaculado coração de Maria
EL SALVADOR: Nossa senhora da Paz
GUATEMALA: Nossa senhora do Rosário
HAITI: Nossa senhora do Perpétuo Socorro
HONDURAS: Nossa senhora de Suyapa
MÉXICO: Nossa senhora de Guadalupe
NICARÁGUA: Nossa senhora da Puríssima Conceição
PANAMÁ: Virgem da Assunção
PARAGUAI: Nossa senhora de Caacupé
PERU:Nossa senhora das Mercês
PORTO RICO: Nossa senhora da Providência
REPÚBLICA DOMINICANA: Nossa senhora de Altagraça
URUGUAI: Nossa senhora dos Trinta e Três Orientais
VENEVUELA: Nossa senhora de Coromoto.

O povo dominado deste Continente aderiu à Maria da História, guardando devotamente a tradição de nossa Mãe Maria. Aqui, a maternidade é sofrida, é dolorosa. Na fé do povo, Maria torna-se profundamente humanizada, enraizada no mundo real dos sofredores: é a mãe mais oprimida dos oprimidos. Sua própria historia é uma historia de pobreza e opressão, num cristianismo da Paixão na Semana Santa que tem dificuldade de chegar à Ressurreição. As duas cenas mais marcantes da historia de Maria são Belém e o Calvário, e sua representação mais significativa é a da Virgem das Dores[68].
Entretanto, o povo incorpora a dimensão histórica de Maria, com a maior naturalidade, na Maria pascal e gloriosa. É natural que uma imagem chore diante das atuais tragédias. No mais profundo da maternidade latino-americana está o mistério da dor. Na sua simplicidade, a fé dos pobres leva-nos ao mistério do Cristo ressuscitado que conserva em seu corpo as chagas[69].
É o que mostra este bendito:

Nossa senhora Santana/ na beira do rio
Lavando os paninhos/ do seu bento filho.

Nossa senhora lavava/ São José estendia,
Menino chorava/ do frio que fazia.

Não chores, menino/ não chores, meu amor
Da faca que corta/ do taio sem dor.

Se eu fosse bem nascido/ se eu fosse bem criado,
O filho da rosa/ de um cravo encarnado...

A relação afetiva com Maria, é fundamental na configuração da teologia mariana na América Latina. Ela é minha mãe e é nossa mãe. Dali se desdobram as diferentes expressões na devoção mariana, não isentas das ambigüidades e conflitos que marcam o chão das diferentes culturas, especialmente da cultura popular. O processo da historia, neste Continente, está marcado pelo machismo, pela opressão e pela predominância da experiência camponesa. O povo devoto, aqui, reconhece-a Virgem: a “nossa mãe” triunfa diante da agressão machista, e tem o privilégio de ter sido amorosamente fecunda por Deus de uma forma semelhante à da mãe-terra[70].
O mistério da Imaculada Conceição é o que, provavelmente, teve maior acolhida entre os oprimidos da América Latina. Embora sem entender muito as formulações dogmáticas, se expressa significativamente de várias maneiras: “a limpa e a Pura Conceição da Virgem Maria”; “a sem pecado”; “a sem mancha”; “a Pura”, “a Puríssima”. Em Cuzco ela é chamada “a Linda”, e em Lima “a Única”. Ela expressa o ideal de mãe e de lar que se opõe ao contexto violento, mentiroso, cheio de maldades e de dominação sexista. As mulheres e os homens oprimidos nela redescobrem sua profunda dimensão de filhas e filhos; nela está a ausência de pecado, de violência, de mentira, de tudo o que é “feio”; ela é a “única” na qual surge um mundo diferente. O imaginário que a representa tem predominante as cores azul a branco, e não o vermelho da agressividade nem o preto da tristeza[71].
A religião do povo também assimilou o dogma da Assunção: Ela não é reduzida à alma de alguém que morreu, mas está viva, na totalidade do seu ser humano, tem uma certa onipresença e com ela é perfeitamente possível falar e conviver em qualquer tempo e qualquer lugar. Mesmo não conseguindo explicar teologicamente o que seja a assunção, o povo sabe que ela está viva, é a Senhora ou Mãe do céu e mora de forma transparente no universo de Deus, de Jesus Cristo, dos anjos e dos santos[72].
“Nossa Senhora” é título supremo de autoridade: ela é a verdadeira senhora dos filhos no lar materno, dentro do universo machista. É a protetora dos seus filhos, auxilio dos pecadores e aflitos, consolo dos tristes, apoio dos inocentes, e, nas situações – limites da vida, ela é a última esperança, e pode-se esperar dela o milagre[73].

2.A DEVOÇÃO A MARIA NA PERSPECTIVA DAS CEBs

Vem, Maria Mulher,
Teu canto novo nos ensinar.
Um Deus com rosto de Mãe
Vem aos pobres anunciar!

É impressionante como mulheres e homens do meio do povo empobrecido e marginalizado, com sua fé vivida na simplicidade, estão ajudando a reformular a fé e a teologia da Igreja. O credo popular, como diz Victor Codina, não é uma degeneração do credo oficial, mas sim, muitas vezes, fonte de vida para toda a Igreja. Isto acontece na mesma dinâmica da historia de Maria: Deus renova o seu povo a partir das margens. É dos anawin (pobres de Javé) que nasce o messias e toda a espiritualidade do Novo Testamento. A partir dos anawin de hoje, nas margens das sociedades do mundo todo, está nascendo uma espiritualidade pobre, simples, evangélica, martirial e pascal[74].
Maria é modelo e protagonista de uma espiritualidade nova, nascida no “poço” da vida, das alegrias e sofrimentos do povo da América Latina[75].
Na Igreja dos Pobres, a mariologia vai se transformando. A partir das CEBs (comunidades eclesiais de base) a mulher, como Maria, tem acesso à Palavra, é protagonista e exerce papel profético. E a nova Mariologia dá ao credo popular um sentido mais libertador. Maria não é somente aurora da evangelização, mas aurora da plena libertação[76].
Maria carregou em seu ventre livre e deu à luz Jesus, o libertador dos pobres. Ela é a concretização do projeto libertador de Deus, ocorrido no meio dos pobres, e é figura da Igreja que nasce dos pobres pelo Espírito de Deus. Na família pobre de Nazaré, Jesus, José e Maria, em sua simplicidade e dignidade do trabalho na luta pelo pão de cada dia, fiéis à espiritualidade dos “pobres de Javé”, no meio de Israel, Deus plantou a semente da libertação de todo um povo[77].
Os membros das CEBs trazem a herança da devoção popular católica com suas inculturações, na matriz cultural tradicional. Acrescentam conteúdos sociais novos, como a luta pela justiça, a opção pelos pobres, a organização popular em vista da construção de uma nova sociedade. E criam uma nova cultura religiosa, que tem os traços do compromisso social, da participação democrática a partir da base e da reflexão na ação. As CEBS pertencem à base leiga popular católica de piedade tradicional, mas são “modernas” na racionalidade: desenvolvem a consciência critica das pessoas; fazem a interação da fé com a vida, da prática libertadora com a celebração do compromisso libertador. Nesta nova matriz cultural, inculturam a imagem de Maria. Mas, mantém-se firmemente na raiz da tradição cristã e na comunhão com toda a Igreja[78].
As canções marianas criadas por “artistas da caminhada” e cantadas nas CEBs trazem estes traços característicos de Maria: libertadora, companheira, mulher do povo, negra. O tema bíblico mais cantado é o do Magnificat.
Através do novo jeito de ler a Bíblia, o povo das CEBs vê a identidade de Maria no seu canto do Magnificat: Ela diz “sim” a Deus e a seu plano constantemente, ao mesmo tempo em que diz “não” às injustiças e às causas da opressão do povo. Ela é “figura e expressão perfeita do povo fiel, serva do Senhor, e também mulher profética que traz em si a Palavra de Deus e as aspirações do povo. E fala e vive a denuncia do pecado e o anuncio da Aliança”[79].

O título de “Companheira”, companheira de caminhada e companheira de luta, é novo. Ela também é chamada de “irmã”.

Na partilha do amor e do axé
Companheira, guerreira, mãe, mulher
Irmã negra na luta e na dor
Peregrina menina Yaô.

Ela é chamada a “entrar” na caminhada” do povo, para guiá-lo ao Reino da justiça e da libertação. A teologia clássica coloca Maria como companheira de Cristo; a mariologia popular, a partir das CEBs, acrescenta que ela é companheira do Povo a caminho. Ela está mais no meio do Povo de Deus, junto dele, do que acima dele. Não é tanto a mediadora que se coloca no lugar do Povo, mas inspiradora e guia, lado a lado com o Povo. Esta nova compreensão de Maria se dá porque os membros das comunidades assumem as suas responsabilidades históricas, e sentem a Virgem Maria atuando junto com eles, e não no lugar deles[80].
Os membros das CEBs vêem Maria muito presente no cotidiano de sua vida e de suas lutas. Ela é Mãe de Deus e mãe do povo; é mãe do céu, santa e misericordiosa, mas é também irmã da terra, companheira de caminho, mãe dos oprimidos e dos desprezados[81]. É libertadora, no sentido da coragem profética, mas também num sentido profundamente amoroso, cordial, afetivo[82]. No mundo guarani, ela é chamada Che Tupãzy, isto é, “minha mãe de Deus”. Aqui está o reconhecimento da dupla maternidade: mãe de Deus e nossa mãe[83].
Os acréscimos e reformulações se fazem na fidelidade à Maria da fé pascal, à Maria da tradição bíblica e da doutrina da Igreja, à Maria da historia: “Que Maria, presente em Pentecostes com os apóstolos, discípulos e discípulas, invocada entre nós como a Nossa Senhora Aparecida e, na América Latina, como a Virgem de Guadalupe, acompanhe e inspire, fortaleça e anime nossa caminhada”[84].
Paulo VI afirmou que Maria de Nazaré “foi absolutamente distinta de uma mulher passivamente remissa ou de religiosidade alienante, ao contrário, foi a mulher que não duvidou em proclamar que Deus é defensor dos humildes e dos oprimidos e derruba os poderosos de seus tronos”[85]. E João Paulo II diz:

O Deus da aliança, cantado pela Virgem de Nazaré, na elevação de seu Espírito, é quem derruba do trono os poderosos, enaltece os humildes, aos famintos lhes enche de bens e aos ricos despede vazios. (...). Portanto, a Igreja é consciente – de que não somente se pode separar estes dois elementos da mensagem contida no magnificat, mas que também se deve salvaguardar cuidadosamente a importância que os “pobres” e a “oração em favor dos pobres” tem na Palavra de Deus vivo. Trata-se de temas e problemas organicamente relacionados com o sentido cristão da liberdade e da libertação[86].

Toda a Igreja é chamada à conversão diariamente, com o olhar em Maria, para ser a serva do Senhor, e deixar que o Senhor opere maravilhas no mundo através de sua serva.

BIBLIOGRAFIA:

BOFF, Clodovis. Introdução à Mariologia. Petrópolis, RJ; vozes, 2004.
BOFF, Clodovis. Maria na cultura brasileira. Aparecida, iemanjá, Nossa Senhora da Libertação. Petrópolis, vozes, 1995.
BOFF, Leonardo. O rosto materno de Deus: ensaio interdisciplinar sobre o feminino e suas formas religiosas. 8ª Ed., Petrópolis, vozes, 2000.
BROWN,R.E. (org.)Maria no Novo Testamento. São Paulo, Paulinas, 1985.
CODINA, Victor. O Credo dos Pobres. São Paulo, Paulinas, 1997.
CONCILIO VATICANO II. Constituição Dogmática Lumem Gentium.
COYLE, K. Maria na Tradição Cristã. São Paulo, Paulus, 1999.
FIORE, S. de & MELO, S. Dicionário de Mariologia. São Paulo, Paulus, 1995.
GEBARA, Ivone & BINGEMER, Maria Clara. “Maria no povo de Deus”. In BEOZZO, José Oscar, ET al. Vida, Clamor e Esperança. São Paulo, Loyola, 1992.
MARINS, José, ET al. Maria Libertadora na caminhada da Igreja. São Paulo, Paulinas, 1986.
PAULO VI. Exortação Apostólica Marialis Cultus. Roma, 1974.
[1] CODINA, Victpor. O Credo dos Pobres. São Paulo, Paulinas, 1997, PP. 41-42.
[2] Documento assinado por cristãos de El Salvador, Coréia, Namíbia, Nicarágua, Filipinas e África do Sul. Apud CODINA, Victor. O Credo dos pobres, São Paulo, Paulinas, 1997, p. 39.
[3] CODINA, op. Cit., PP. 38-40.
[4] Idem, p. 41.
[5] GONZALEZ DORADO, Antonio. Mariologia Popular Latino-Americana. São Paulo, Loyola, 1992.
[6] BOFF,Leonardo. O rosto materno de Deus: Ensaio Knterdisciplinar sobre o feminino e suas formas religiosas. 8ª Ed., Petrópolis, Vozes, 2000, PP. 13-18.
[7] PEREIRA, Nancy Cardoso. Amantíssima e só: Evangelho de Maria & as outras. São Paulo, Olho D’Água 1999, p. 40.
[8] De fide orthodoxa, III, 12: pg 94, 1029.
[9] “Maria... une em si de certo modo e reflete as supremas normas da fé” (LG 65).
[10] CELAM. Igreja e religiosidade popular na América Latina, 1976.
[11] BOFF,Clodovis, Introdução à Mariologia. Petrópolis, RJ: Vozes, 2004, p.13.
[12] É interessante ver a obra de MORIN, Émile. Jesus e as estruturas de seu tempo. São Paulo, Paulinas, 1981. Será oportuno para ver a condição das mulheres no contexto do judaísmo no tempo de Jesus.
[13] BOFF. O rosto materno de Deus, op. Cit., p. 133.
[14] GEBARA, Ivone e BINGEMER, Maria Clara. “Maria no povo de Deus”. In BEOZZO, José Oscar, ET AL. Vida, clamor e esperança. São Paulo, Loyola, 1992, PP. 196-197.
[15] BOFF. O rosto materno de Deus, op. Cit., p. 133.
[16] MARINS, José, ET AL. Maria Libertadora na caminhada da Igreja. São Paulo, Paulinas, 1986, p.31.
[17] Idem.
[18] GONZALEZ DORADO, op. Cit., PP. 25-26.
[19] Idem.
[20] Seguimos principalmente BOFF, Leonardo. O rosto materno de Deus, op. Cit., PP. 122-128.
[21] MARINS, op. Cit., p. 80.
[22] Ibidem, p. 124.
[23] GEBARA e BINGEMER, op. Cit., p. 197.
[24] Ibidem, p. 197-198.
[25] Ibidem, p. 198.
[26] Ibidem,p.199.
[27] Ibidem, p. 199.
[28] Ibidem, p. 199.
[29] MARINS, op. Cit. P. 81-82.
[30] GEBARA, Ivone e BINGEMER, Maria Clara. “Maria no Povo de Deus”. In BEOZZO, José Oscar, ET AL. Vida, Clamor e Esperança. Reflexão para os 500 anos de evangelização da América Latina. São Paulo, Loyola, 1992, PP. 195-196.
[31] Ibidem,p.196.
[32] BOFF. O rosto materno de Deus, op. Cit., PP. 138-139.
[33] Esta parte da evolução da Mariologia no Novo Testamento é desenvolvida por Clodovis Boff, em Introdução à Mariologia, op. Cit., cap. I.
[34] GONZALES DORADO, op. Cit., PP. 28-32
[35] Clodovis Boff, op. Cit., p.26.
[36] Ibidem.
[37] BOFF. O rosto materno de Deus, op. Cit., p.139.
[38] GONZALEZ DORADO,Op. Cit., p.28-32.
[39] CODINA. O Credo dos pobres, op. Cit., p.43.
[40] BOFF. O rosto materno de Deus, op. Cit., PP. 140-145.
[41] BOFF, idem.
[42] MARINS, ET AL. Maria Libertadora, op. Cit., p.18.
[43] Ibidem, cit. p. 20.
[44] BOFF. O rosto materno de Deus, op. Cit., p. 179.
[45] IDÍGORAS, J. L. Vocabulário teológico para a América Latina. São Paulo, Paulinas, 1983.
[46] BOFF. O rosto materno de Deus, op. Cit., PP. 149-151.
[47] BOFF. O rosto materno de Deus, op. Cit.,PP 151-164.
[48] IDÍGORAS, op. Cit., p.271.
[49] BOFF. O rosto materno de Deus, op.cit.,PP.175-176.
[50] JOSAPHAT, Frei Carlos. As santas doutoras. Espiritualidade e emancipação da mulher. São Paulo, paulinas, 1999,p.17.
[51] CODNA. O Credo dos pobres, op.cit.,p.43-44.
[52] MARINS, et al. Maria Libertadora, op.,cit.,PP.20-21.
[53] GONZALEZ DORADO. Mariologia popular latino-americana, op.cit.,p.98.
[54] PAULO VI. Exortação Apostólica Marialis Cultus, Roma, 1974, n 34-36.
[55] GEBARA, Ivone & BINGEMER, Maria Clara. Maria Mãe dos pobres. Petrópolis, Vozes, 1987,p.141.
[56] GONZALEZ DORADO, op. Cit., PP.33-41.
[57] Extraído da “Cronicas Miscelánea de Jalino”, escrita por Fr. Antonio de Tello. Apud GONZALEZ DORADO, op.cit.,p.37.
[58] MOREIRA DA SILVA, Vilma. “La mujer em La teologia. Reflexion bíblico teológica”. In AA.VV. mujer latinoamericana, Iglesia e teologia. México, 1981,p.155-156.
[59] GEBARA E BINGERMER. “Maria no Povo de Deus”,op.cit.,p.200.
[60] GONZALEZ DORADO. Mariologia popular latino-americana,op.,cit.,p.104.
[61] Ibidem,PP.200-201.
[62] Apresentamos uma síntese, a partir destes autores: HOORNAERT, Eduardo,ET al. Historia da Igreja no Brasil – primeira época. Tomo II/1,4ª.ed.,Paulinas e Vozes, 1992, PP.344-350; Idem. Formação do Catolicismo Brasileiro – 1550-1800. Petrópolis, Vozes, 1978; AZZI, Riolando. A Cristandade Colonial: Mito e ideologia. Petrópolis, vozes, 1987; BEOZZO ,José Oscar. “Irmandades, santuários e capelinhas de beira de estrada”. In REB, dezembro de 1977.
[63] Pe. Antonio Vieira. Sermões Pregados no Brasil. Lisboa, Agencia Geral das Colônias, 1940, PP.30-42.
[64] MACHADO, Pe. João Correa. Aparecida na história e na Literatura. Campinas, 1976,PP.104-105. Ver também HOORNAERT, Eduardo, “A Evangelização segundo a tradição Guadalupiana, in REB de 1974,PP.524-545.
[65] ELIZONDO, Virgílio. “Maria e os pobres: um modelo de ecumenismo evangelizador”. In AA. VV., a mulher pobre na historia da Igreja latino-americana. São Paulo, Paulinas, 1984,p.22.
[66] GONZALEZ DORADO. “Mariologia popular..., op. Cit., p.43.
[67] MARINS, ET al. Maria libertadora,op.cit.,PP.,92-93.
[68] DORADO. Mariologia popular latino-americana.pp.67-70.
[69] Ibidem.p.70.
[70] DORADO. Mariologia popular latino-americana.pp.57-64 e 66.
[71] Ibidem.p.66.
[72] Ibidem.pp.66-67.
[73] Ibidem.p.67.
[74] CODINA, Victor. O credo dos Pobres. São Paulo, Paulinas, 1997.pp. 46-47.
[75] GEBARA E BINGEMER. Maria no povo de Deus,p.203.
[76] CODINA. O credo dos pobres.
[77] GEBARA e BINGEMER. Maria no povo de Deus.pp.202-203.
[78] BOFF. Clodovis. Maria na cultura brasileira. Aparecida. Iemanjá, Nossa senhora da Libertação. Petrópolis, Vozes, 1995. P.75-77.
[79] GEBARA e BINGERMER. Maria do povo de Deus. PP. 202-204.
[80] Ibidem,PP.77-86.
[81] GEBARA e BINGEMER. Maria do povo de Deus,PP.202-204.
[82] BOFF. Clodovis. Maria na cultura brasileira, PP. 90-91.
[83] DORADO. Mariologia popular latino-americana,p.65.
[84] Carta dos bispos católicos do Brasil e da América Latina presentes ao X Intereclesial de CEBs, 11 a 15 de julho de 2000.
[85] Marialis Cultus, 37.
[86] RM 37,3-5.