terça-feira, 8 de janeiro de 2013

O Santo Sepulcro


Na imaginação dos fiéis, este lugar santo assume uma relevância simbólica particular: se esperaria que o santuario mais importante da cristandade se elevasse majestosamente sobre uma colina. Na realidade, o monumento é encerrado nas construções anônimas. No lugar onde se procuraria uma luz encandescente, perde-se na escuridão e numa sensação de estreiteza. Onde se esperava encontrar a paz, se é assediado pela cacofonia das diferentes melodias e pelo barulho dos martelos dos pedreiros. Onde se desejaria uma veneração condescendente e desinteressada, encontra-se o ciume: os seis grupos representados - a Igreja católica, a Igreja grega ortodoxa, os Armenios, os Sírios, os coptas e os Etíopes - eles se vigiam uns aos outros constantemente para reagir à mínima violação de seus direitos pessoais.
Nunca a fraqueza humana foi tão evidente como neste lugar santo. Aqueles que aqui vieram sem fé esperando encontrar sinais exteriores partirão sem convicção, enquanto que aqueles que souberem buscar a resposta neles mesmos compreenderão porque centenas de milhares de peregrinos arriscaram voluntariamente suas vidas  e a liberdade para virem rezar aqui.
Será que é o lugar onde o Cristo foi morte e ressucitou? Muito provavelmente, sim. No inicio do I século d.C., este lugar era uma pedreira abandonada fora dos muros da cidade. Túmulos eram talhados nas paredes verticais deixadas pela extração de pedras fendidas de qualidade inferior a 10 metros de altura. Pode-se precisar que os túmulos nas pedreiras datam do I século comparando-os aos túmulos encontrados alhures. Estes fatos arqueológicos servem ao menos para reforçar os paralelos entre este lugar e a descrição correspondente no Evangelho relatando que Jesus foi crucificado fora da cidade, sobre um lugar tendo a forma de um crânio (Jo 19, 17) e não longe de um túmulo (Jo 19, 41-42).
Estas indicações arqueológicas encontram uma base na tradição. Na comunidade judaica, o costume era de rezar sobre os túmulos dos santos, e as celebrações litúrgicas sobre os túmulos em questão se reproduziram ao menos até o ano 66 d.C. A lembrança deste lugar permaneceu viva, muito depois que Adriano (135 d.C.) tenha preenchido de pedras para criar uma superficie plana a fim de construir seu templo consagrado a Afrodita. Não é evidente que Adriano tenha escolhido este lugar para destruir a lembrança cristã, como o pretende Jerônimo; um lugar elevado natural próximo da rua principal teria atirado a atenção de não importa qual arquiteto. O emperador Constatino deve ter longamente refletido no valor deste lugar tradicional antes de precisar a colocação de sua Igreja dedicada à Ressurreição. Pois, para construir uma Igreja justo sobre o túmulo, primeiramente foi preciso destruir o importante edificio, o que multiplicaria o custo da construção. Como o povo queria o lugar exato para a construção, Constantino finalmente cedeu à tradição. Na verdade, o público sempre rejeitou todo outra sugestão com exeção do túmulo do jardim criado pelo general Gordon em 1883.
Constantino começou seu canteiro em 326 e inaugurou sua igreja em 335. A igreja se compunha de 4 elementos: 1 átrium no alto da escada vindo da rua principal; uma basílica coberta com uma absídia; um pátio, no ângulo sudeste, a roca identificada com o Golgota; o túmulo. No momento da inauguração, o túmulo não fora destacado do despenhadero, este trabalho imenso foi terminado por volta do ano 348.
Os Persas queimaram a Igreja em 614; Modesto a reconstruiu sem grandes mudanças. Quando o califa Omar venho assinar o tratado de capitulação em 638, ele recusou o convite do patriarca propondo rezar na igreja com esta resposta: “se eu rezo nesta igreja, voce a perderá; pois os crentes musulmanos virão a ocupar dizendo: Omar rezou aqui”.  Mas se a igreja tivesse sido  transformada em mesquita nesta época, ela teria escapado aos ataques do califa Hakim. Em 1009 este ordenou a destruição sistemática da igreja: as equipes de destruição quebraram as paredes e danificaram o túmulo com golpes de martelo e com picaretas até que os descombros impediram-nos a continuar a destruição.
A comunidade de Jerusalém, desprovida de dinheiro, não pode pagar a reparação. Foi necessario esperar até 1042, o ano que Constantino IX Monomaco subiu ao trono bizantino, para que tesouraria imperial acordasse uma subvenção. No entanto a soma foi insuficiente e o projeto de reconstrução teve que excluir uma boa parte do idificio inicial. Para compensar a perda da basílica, acrescentou-se um galeria superior e uma absidia en torno da retonda. O pátio retomou mais ou menos seu aspecto inicial. Esta foi a igreja que acolheu os cruzados em 15 de julho de 1099. Cinquenta anos mais tarde, os cruzados deram um novo retoque à igreja romana construida sobre o pátio e acrescentada à retonda. O Santo Sepulcro que se visita hoje foi portanto arrumado pelos cruzados. A igreja foi danificada por um incendio em 1808 e por uma terremoto em 1927, mas as tres comunidades maiores (católicos, ortodoxos e armenios) somente entraram em acordo para reconstrução em 1959. Agora, os trabalhos já estão quase terminados. O principio de base é a remoção de elementos que não asseguram suas funções estruturais: uma pedra partida foi substituida, enquanto que sua vizinha que era sólida foi deixada no lugar. Os pedreiros da região aprenderam a talhar a pedra da mesma maneira que se fazia no século XI para a retonda e como se fazia no século XII para a igreja.

Jerome Murphy-O’Connor, Guide Archeologique de la Terre Sainte, Denoël, 1982, 57-60.



Santo Secpulcro, um olhar histórico.
Na sequência da destruição de Jerusalém em 70 d.C. pelo Imperador Tito; Um outro imperador romano chamado Élio Trajano  Adriano (117-138), ordenou a sua reconstrução segundo um modelo que visava fazer dela uma cidade pagã chamada Aelia Capitolina[1].;  A fundação de Aelia Capitolina resultou da fracassada revolta judia de Bar Kokhba[2]; os judeus foram proibidos de entrar na nova cidade e um destacamento da Décima Legião foi designado para guardar a cidade e assegurar a proibição de acesso. Neste sentido, o imperador ordena que o local identificado com a sepultura de Jesus seja coberto com terra e que nele fosse construído um templo dedicado a Vénus.
Em 313, o imperador Constantino[3] decretou o Édito de Tolerância para com os cristãos (ou Édito de Milão[4]), que implicou o fim das perseguições. Em 326, sua mãe Helena[5] visitou Jerusalém com o objetivo de procurar os locais associados aos últimos dias de Jesus Cristo. Em Jerusalém, ela identificou o local da crucificação (o rochedo chamado Gólgota[6]) e a tumba próxima conhecida como Anastasis[7] ("ressurreição", em grego). O imperador decidiu então construir um santuário apropriado no local, a Igreja do Santo Sepulcro, no lugar do templo de Adriano dedicado a Vénus. Os arquitetos inspiraram-se não nas estruturas religiosas pagãs, mas na basílica[8], um edifício que entre os romanos servia como local de encontro, de comércio e de administração da justiça.
Em 614, a igreja de Constantino foi praticamente destruída pela invasão dos persas sassânidas[9] que roubaram os seus tesouros. A basílica foi reconstruída pelos bizantinos[10] durante a reconquista da cidade por Heráclio[11].
Em 638, a cidade de Jerusalém, assim como toda a Palestina[12], passou para as mãos dos muçulmanos. Os primeiros líderes muçulmanos de Jerusalém revelaram-se tolerantes para com o cristianismo. Em 966, as portas e o telhado da igreja foram queimados durante um motim. Em 1009, o califa fatimida[13] Al-Hakim ordenou a destruição de todas as igrejas de Jerusalém, incluindo o Santo Sepulcro, sendo que somente os pilares da igreja, que eram da época de Constantino, sobreviveram à destruição. A notícia da sua destruição foi um dos fatores que estiveram na origem das Cruzadas[14].
Em 1099, os cruzados tomaram Jerusalém e construíram uma nova basílica que, no seu essencial, é a que se encontra hoje no local. A nova igreja foi consagrada em 1149. Debaixo da igreja encontra-se a cripta de Santa Helena, local onde a mãe de Constantino I afirmou ter encontrado a verdadeira cruz na qual Jesus Cristo teria sido crucificado.
Com o regresso de Jerusalém ao domínio islâmico em 1187, Saladino[15] proibiu a destruição de qualquer edifício religioso associado ao cristianismo. No século XIV, o local começou a ser administrado por monges católicos e por monges ortodoxos gregos. Outras comunidades pediam também a possibilidade de gerir o local (como os coptas[16])
No século XVIII, procedeu-se à reparação da cúpula da Igreja do Santo Sepulcro. Em 1808, um incêndio destruiu o local e a restauração iniciou-se em 1810. Novos restauros ocorrem entre 1863 e 1868.
Em 1927, um abalo sísmico em Jerusalém causou graves estragos à estrutura.
Desde o tempo dos cruzados, os recintos e o edifício da Basílica do Santo Sepulcro tornaram-se propriedade das três maiores denominações - os greco-ortodoxos, os armênio-ortodoxos e os católicos romanos. Outras comunidades - os copta-ortodoxos egípcios, os etíope-ortodoxos e os sírio-ortodoxos - também têm certos direitos e pequenas propriedades dentro ou a pouca distância do edifício. Os direitos e os privilégios de todas estas comunidades são protegidos pelo Status Quo[17] dos Lugares Santos (1852), conforme estabelece o Artigo LXII do Tratado de Berlim[18] (1878).


[1] O nome Aelia vem do nome gentil de Adriano; Capitolina, porque a nova cidade foi dedicada a Júpiter Capitolino, a quem um templo foi construído no sítio do Templo Judeu.

[2] Foi uma rebelião de judeus contra o Império Romano, que explodiu na Judeia, em 132 d.C.
[3]Constantino I, também conhecido como Constantino Magno ou Constantino, o Grande (em latim Flavius Valerius Constantinus).

[4] Também referenciado como Édito da Tolerância, declarava que o Império Romano seria neutro em relação ao credo religioso, acabando oficialmente com toda perseguição sancionada oficialmente, especialmente do Cristianismo. O édito foi emitido pelo tetrarca ocidental Constantino I, o grande, e por Licínio, o tetrarca Oriental.

[5] Flávia Júlia Helena, também conhecida como Santa Helena, Helena Augusta, e Helena de Constantinopla.

[6] Calvário (em aramaico Gólgota) é o nome dado à colina que na época de Cristo ficava fora da cidade de Jerusalém, onde Jesus foi crucificado. Calvaria em latim, Κρανιου Τοπος (Kraniou Topos) em grego e Gûlgaltâ em transliteração do aramaico. O termo significa “caveira”, referindo-se a uma colina ou platô que contém uma pilha de crânios ou a um acidente geográfico que se assemelha a um crânio.

[7] Em grego: anastasis significa literalmente "levantar; erguer". Esta palavra é usada com frequência nas Escrituras bíblicas, referindo à ressurreição dos mortos. No seio do povo hebreu, a palavra correlata designava diversos fenômenos que eram confundidos na mentalidade da época. O seu significado literal é voltar à vida; assim, o ato de uma pessoa considerada morta viver novamente era chamado ressurreição. Existe a conotação escatológica adotada pelas igreja cristãs para esse termo que é a ressurreição dos mortos no dia do juízo final.

[8] Basílica é um grande espaço coberto, destinado à realização de assembleias cuja origem remonta à Grécia Helenística. O seu modelo foi largamente desenvolvido pelos Romanos, sendo mais tarde adaptado como modelo para os templos cristãos.
[9] O império sassânidas foi o último Império Persa pré-islâmico, governado pela dinastia sassânida de 224 d.C. a 651.

[10] O Império Bizantino (ou Bizâncio) foi o Império Romano do Oriente durante a Antiguidade Tardia e a Idade Média, centrado na sua capital, Constantinopla. Conhecido simplesmente como Império Romano.

[11] Flávio Heráclio Augusto (ca. 575  11 de fevereiro de 641) reinou como imperador bizantino de 5 de outubro de 610 a 11 de fevereiro de 641.

[12] Palestina é a denominação histórica dada pelo Império Romano a partir de um nome hebraico bíblico, a uma região do Oriente Médio situada entre a costa oriental do Mediterrâneo e as atuais fronteiras ocidentais do Iraque e Arábia saudita, hoje compondo os territórios da Jordânia e Israel, além do sul do Líbano e os territórios de Gaza e Cisjordânia.

[13] O Califado Fatímida foi um califado formado com a ascensão da dinastia dos fatímidas, uma dinastia do xiismo ismaelita constituída por catorze califas, que reinou na África do Norte entre 909 e 1048 e no Egipto entre 969 e 1171.

[14] Chama-se cruzada a qualquer um dos movimentos militares de inspiração cristã que partiram da Europa Ocidental em direção à Terra Santa e à cidade de Jerusalém com o intuito de conquistá-las, ocupá-las e mantê-las sob domínio cristão. Estes movimentos estenderam-se entre os séculos XI e XIII, época em que a região estava sob controle dos turcos muçulmanos.

[15] Saladino foi um chefe militar curdo muçulmano que se tornou sultão do Egito e da Síria e liderou a oposição islâmica aos cruzados europeus no Levante. No auge de seu poder, seu domínio se estendia pelo Egito, Síria, Iraque, Iêmen e pelo Hijaz. Foi responsável por reconquistar Jerusalém das mãos do Reino de Jerusalém, após sua vitória na Batalha de Hattin e, como tal, tornou-se uma figura emblemática na cultura curda, árabe, persa, turca e islâmica em geral.

[16] A Igreja Ortodoxa Copta, de acordo com a tradição, foi estabelecida pelo apóstolo São Marcos no Egito em meados do século I (aproximadamente no ano 60). É uma Igreja não-calcedoniana, isto é, uma Igreja cristã que não está em comunhão com a Igreja Ortodoxa nem com a Igreja Católica.

[17] O conceito de "status quo" origina-se do termo diplomático "in statu quo ante bellum", que significa "no estado (em que se estava) antes da guerra.

[18] O Tratado de Berlim, concluído em 13 de julho de 1878, foi acordado entre as principais potências da Europa e o Império Otomano, e determinou o estabelecimento de um verdadeiro regime de controle permanente sobre a administração interna do império, de maneira a garantir o que os europeus invocavam como um mínimo aceitável de direitos, em particular a "liberdade religiosa" para os cidadãos submetidos à lei turca.

quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

ASPECTOS DA EVANGELIZAÇÃO


I. Introdução
1. Enviado pelo Pai a anunciar o Evangelho (cf. Mc 1, 14), Jesus Cristo convida todos os homens à conversão e à fé (cf. Mc 1, 14-15), confiando aos Apóstolos, depois da sua ressurreição, a continuação da sua missão evangelizadora (cf. Mt 28, 19-20; Mc 16, 15; Lc 24, 4-7; Act 1, 3): «como o Pai me enviou também Eu vos envio» (Jo 20, 21; cf. 17, 18). Na verdade, através da Igreja, Ele quer atingir cada época da história, cada lugar da terra e cada âmbito da sociedade, chegar a cada pessoa, para que haja um só rebanho e um só pastor (cf. Jo 10, 16): «Ide por todo o mundo e pregai o Evangelho a toda a criatura. Quem acreditar e for baptizado será salvo, mas quem não acreditar será condenado» (Mc 16, 15-16).
Com efeito, os Apóstolos, «movidos pelo Espírito, convidavam todos a mudar de vida, a converter-se e a receber o Baptismo»[1], porque a «Igreja peregrinante é necessária à salvação»[2]. É o próprio Senhor Jesus Cristo que, presente na sua Igreja (cf. Mt 28, 20), precede a obra dos evangelizadores, a acompanha e a segue, fazendo frutificar o trabalho. Aquilo que aconteceu nas origens do cristianismo continua ao longo de toda a história.
No início do terceiro milénio, ressoa, ainda no mundo, o convite que Pedro, juntamente com o irmão André e os primeiros discípulos, escutou do próprio Jesus: «faz-te ao largo e lançai as redes para a pesca» (Lc 5, 4)[3]. E, depois do milagre de uma grande pesca, o Senhor anunciou a Pedro que se tornaria «pescador de homens» (Lc 5, 10).
2. O termo evangelização tem um significado muito rico[4]. Em sentido amplo, esse resume toda a missão da Igreja, porque toda a sua vida consiste em realizar a traditio Evangelii, o anúncio e a transmissão do Evangelho, que é «força salvadora de Deus para todo aquele que acredita» (Rm 1, 16) e que em última essência se identifica com o próprio Cristo (cf. 1 Cor 1, 24). Por isso, assim entendida, a evangelização tem como destinatária toda a humanidade. Em todo o caso, evangelizar significa não só ensinar uma doutrina, mas anunciar Jesus Cristo com palavras e acções, isto é, fazer-se instrumento da sua presença e acção no mundo.
«Toda a pessoa tem o direito de ouvir a ‘boa nova’ de Deus que se revela e se dá em Cristo, para realizar plenamente a sua própria vocação»[5]. Trata-se de um direito conferido pelo próprio Senhor a cada pessoa humana, pelo qual cada homem e cada mulher pode verdadeiramente dizer com São Paulo: Jesus Cristo «amou-me e entregou-se a si mesmo por mim» (Gal 2, 20). A este direito corresponde um dever de evangelizar: «pois, anunciar o evangelho não é para mim motivo de glória. É antes uma necessidade que se me impõe. Ai de mim, se eu não anunciar o Evangelho!» (1 Cor 9, 16; cf. Rom 10, 14). Compreende-se, então, como toda a actividade da Igreja tenha uma essencial dimensão evangelizadora e nunca deve ser separada do compromisso para ajudar a todos a encontrar Cristo na fé, que é o objectivo primário da evangelização: «a questão social e o Evangelho são entre si inseparáveis. Onde dermos aos homens só conhecimentos, habilidades, capacidades técnicas e instrumentos, ali levaremos muito pouco»[6].
3. Todavia, hoje verifica-se uma crescente confusão que induz muitos a deixar inaudível e inoperante o mandato missionário do Senhor (cf. Mt 28, 19). Muitas vezes pensa-se que toda a tentativa de convencer os outros em questões religiosas seja um limite posto à liberdade. Seria lícito somente expor as próprias idéias e convidar as pessoas a agir segundo a consciência, sem favorecer uma conversão a Cristo e à fé católica. Diz-se que basta ajudar os homens a serem mais homens ou mais fiéis à própria religião, que basta construir comunidades capazes de trabalhar pela justiça, a liberdade, a paz, a solidariedade. Além disso, alguns defendem que não se deveria anunciar Cristo a quem O não conhece, nem favorecer a adesão à Igreja, pois seria possível ser salvos mesmo sem um conhecimento explícito de Cristo e sem uma incorporação formal à Igreja.
Perante tais problemáticas, a Congregação para a Doutrina da Fé julgou necessário publicar a presente Nota. Essa, pressupondo o conjunto da doutrina católica sobre a evangelização, amplamente tratada no Magistério de Paulo VI e de João Paulo II, tem a finalidade de esclarecer alguns aspectos da relação entre o mandato missionário do Senhor e o respeito da consciência e da liberdade religiosa de todos. Trata-se de aspectos que têm importantes implicações antropológicas, eclesiológicas e ecuménicas.
II. Algumas implicações antropológicas
4. «Esta é a vida eterna, que te conheçam como o único Deus verdadeiro e aquele que enviaste, Jesus Cristo» (Jo 17, 3): Deus deu aos homens a inteligência e a vontade, para que livremente o pudessem procurar, conhecer e amar. Por isso, a liberdade humana é um recurso e um desafio oferecidos ao homem por Aquele que o criou. Uma oferta dirigida à sua capacidade de conhecer e amar aquilo que é bom e verdadeiro. Nada como a procura do bem e da verdade põe em jogo a liberdade humana, solicitando-a a uma adesão tal que compromete os aspectos fundamentais da vida. De modo particular é o caso da verdade salvífica, que não é só objecto do pensamento, mas algo que afecta toda a pessoa – inteligência, vontade, sentimentos, actividades e projectos – quando essa adere a Cristo. Tal procura do bem e da verdade é já obra do Espírito Santo, que abre e dispõe os corações para o acolhimento da verdade evangélica, segundo a conhecida afirmação de S. Tomás de Aquino: «omne verum a quocumque dicatur a Spiritu Sanctu est»[7]. É, por isso, importante valorizar esta acção do Espírito, que cria afinidade e aproxima os corações à verdade, ajudando a inteligência humana a maturar em sapiência e em abandono confiante ao verdadeiro[8].
Todavia, hoje formulam-se, com maior frequência, interrogações sobre a legitimidade de propor aos outros — a fim que possam aderir por sua vez — aquilo que é verdadeiro para si. Muitas vezes, tal proposta é vista como um atentado à liberdade dos outros. Esta visão da liberdade humana, desvinculada da sua referência inseparável da verdade, é uma das expressões «daquele relativismo que, nada reconhecendo como definitivo, deixa sozinho, como última medida, o próprio eu com as suas decisões, e sob a aparência da liberdade torna-se para cada um uma prisão»[9]. Nas diversas formas de agnosticismo e relativismo presentes no pensamento contemporâneo, «a legítima pluralidade de posições cedeu o lugar a um pluralismo indefinido, fundado no pressuposto de que todas as posições são equivalentes: trata-se de um dos sintomas mais difusos, no contexto actual, de desconfiança na verdade. E esta ressalva vale também para certas concepções de vida originárias do Oriente: é que negam à verdade o seu carácter exclusivo, ao partirem do pressuposto de que ela se manifesta de modo igual em doutrinas diversas ou mesmo contraditórias entre si»[10]. Se o homem nega a sua fundamental capacidade da verdade, se é céptico sobre a sua faculdade de conhecer realmente aquilo que é verdadeiro, ele acaba por perder o que, de facto, pode fascinar a sua inteligência e encantar o seu coração.
5. A tal respeito, na procura da verdade, quem pensa confiar só nas suas próprias forças, sem reconhecer a necessidade que cada um precisa da ajuda dos outros, engana-se. O homem «desde o seu nascimento aparece integrado em várias tradições; delas recebe não apenas a linguagem e a formação cultural, mas também muitas verdades nas quais acredita quase instintivamente. (...) Na vida duma pessoa, são muito mais numerosas as verdades simplesmente acreditadas que aquelas adquiridas por verificação pessoal»[11]. A necessidade de se fiar nos conhecimentos transmitidos pela própria cultura, ou adquiridos por outros, enriquece o homem tanto com verdades que ele não podia conseguir sozinho, como pelas relações interpessoais e sociais que ele desenvolve. Pelo contrário, o individualismo espiritual isola a pessoa impedindo-a de se abrir com confiança aos outros – e por isso de receber e dar em abundância aqueles bens que nutrem a sua liberdade – e pondo em perigo também o direito de manifestar socialmente as próprias convicções e opiniões[12].
Em particular, a verdade que é capaz de iluminar o sentido da própria vida e de a orientar, atinge-se também mediante o abandono confiante a quem pode garantir a certeza e a autenticidade da própria verdade: «a capacidade e a decisão de confiar o próprio ser e existência a outra pessoa constituem, sem dúvida, um dos actos antropologicamente mais significativos e expressivos»[13]. O acolhimento da Revelação, que se realiza na fé, apesar de acontecer a um nível mais profundo, entra na dinâmica da busca da verdade: «a Deus que revela é devida a «obediência da fé» (Rom 16,26; cfr. Rom 1,5; 2 Cor 10, 5-6); pela fé, o homem entrega-se total e livremente a Deus oferecendo “a Deus revelador o obséquio pleno da inteligência e da vontade” e prestando voluntário assentimento à sua revelação»[14]. O Concílio Vaticano II, depois de ter afirmado o dever e o direito de cada homem de buscar a verdade em matéria religiosa, acrescenta: «a verdade deve ser buscada pelo modo que convém à dignidade da pessoa humana e da sua natureza social, isto é, por meio de uma busca livre, com a ajuda do magistério ou ensino, da comunicação e do diálogo, com os quais os homens dão a conhecer uns aos outros a verdade que encontraram ou julgam ter encontrado»[15]. Em todo o caso, a verdade «não se impõe de outro modo senão pela sua própria força»[16]. Por isso, solicitar honestamente a inteligência e a liberdade de uma pessoa, no encontro com Cristo e o seu Evangelho, não é uma indevida intromissão nos seus confrontos, mas uma legítima oferta e um serviço que pode tornar mais fecundo as relações entre os homens.
6. A evangelização, além disso, é uma possibilidade de enriquecimento não apenas para os destinatários mas também para os seus autores e para toda a Igreja. Por exemplo, no processo de inculturação, «a própria Igreja universal se enriquece com novas expressões e valores nos diversos sectores da vida cristã (…); conhece e exprime cada vez melhor o mistério de Cristo, e é estimulada a uma renovação contínua»[17]. A Igreja, de facto, que desde o dia de Pentecostes manifestou a universalidade da sua missão, assume em Cristo as inumeráveis riquezas dos homens de todos os tempos e lugares da história humana[18]. Além do seu valor antropológico intrínseco, cada encontro com uma pessoa ou uma cultura concreta pode despertar potencialidades do Evangelho pouco explicitadas anteriormente, que enriquecem a vida concreta dos cristãos e da Igreja. Mesmo graças a este dinamismo, «a tradição apostólica progride na Igreja sob a assistência do Espírito Santo»[19].
De facto é o Espírito que, após ter realizado a incarnação de Jesus Cristo no ventre virginal de Maria, vivifica a acção materna da Igreja na evangelização das culturas. Mesmo que o Evangelho seja independente de todas as culturas, ele é capaz de as impregnar a todas sem se escravizar a nenhuma delas[20]. Neste sentido, o Espírito Santo é também o protagonista da inculturação do Evangelho, é aquele que preside de modo fecundo ao diálogo entre a Palavra de Deus, revelada em Cristo, e as questões mais profundas que brotam da multidão das pessoas e das culturas. Continua assim na história, na unidade de uma única e mesma fé, o evento do Pentecostes, que se enriquece através da diversidade das linguagens e das culturas.
7. A actividade pela qual o homem comunica aos outros eventos e verdades significativas do ponto de vista religioso, favorecendo o acolhimento, não apenas está em profunda sintonia com a natureza do processo de diálogo, de anúncio e de aprendizagem, mas também responde a uma outra realidade antropológica: é próprio do homem o desejo de tornar participantes os outros dos próprios bens. O acolhimento da Boa Nova na fé, impulsiona por si a tal comunicação. A Verdade que salva a vida acende o coração de quem a recebe com um amor para com o próximo que move a liberdade a voltar a dar aquilo que gratuitamente já se recebeu.
Embora os não cristãos se possam salvar mediante a graça que Deus dá por “caminhos que só Ele sabe”[21], a Igreja não pode não ter conta do facto que a esses falta um grandíssimo bem neste mundo: conhecer o verdadeiro rosto de Deus e a amizade com Jesus Cristo, o Deus connosco. De facto, «não há nada mais belo do que ser alcançados, surpreendidos pelo Evangelho, por Cristo. Não há nada de mais belo do que conhecê-Lo e comunicar com os outros a Sua amizade»[22]. Para qualquer homem a revelação das verdades fundamentais[23] sobre Deus, sobre si mesmo e sobre o mundo são um grande bem; enquanto viver na obscuridade, sem a verdade acerca das questões últimas, é um mal, muitas vezes na origem de sofrimentos e de escravaturas dramáticas. Eis porque S. Paulo não hesita a descrever a conversão à fé cristã com uma libertação «do reino das trevas» e uma entrada «no reino do Filho predilecto, no qual temos a redenção e remissão dos pecados» (Col 1, 13-14). Por isso, a plena adesão a Cristo, que é a Verdade, e o ingresso na sua Igreja não diminuem mas exaltam a liberdade humana e a impulsionam para o seu cumprimento, num amor gratuito e pleno de carinho pelo bem de todos os homens. É um dom inestimável viver no abraço universal dos amigos de Deus, que brota da comunhão com a carne vivificante do Seu Filho, receber Dele a certeza do perdão dos pecados e viver na caridade que nasce da fé. A Igreja quer tornar participantes destes bens todas as pessoas, para que tenham assim a plenitude da verdade e dos meios de salvação, «para entrar na liberdade dos filhos de Deus» (Rom 8, 21).
8. A evangelização comporta também um diálogo sincero, que procura compreender as razões e os sentimentos dos outros. De facto, não se acede ao coração do homem sem gratuidade, caridade e diálogo, de modo que a palavra anunciada não seja só proferida, mas também adequadamente comprovada no coração dos seus destinatários. Isso exige ter em conta as esperanças e sofrimentos das situações concretas aos quais é dirigida. Além disso, através do diálogo, os homens de boa vontade abrem mais livremente o coração e partilham sinceramente as suas experiências espirituais e religiosas. Tal partilha, característica da verdadeira amizade, é uma ocasião preciosa para o testemunho e para o anúncio cristão.
Como em qualquer campo da actividade humana, também no diálogo em matéria religiosa pode entrar o pecado. Algumas vezes, pode acontecer que tal diálogo não seja guiado pelo seu natural fim, mas ceda ao engano, a interesses egoísticos ou à arrogância, faltando ao respeito à dignidade humana e à liberdade religiosa dos interlocutores. Por isso, «a Igreja proíbe severamente obrigar quem quer que seja a abraçar a fé, ou induzi-lo e atraí-lo com processos indiscretos, do mesmo modo que reclama com vigor o direito de ninguém ser afastado da fé por meio de vexações iníquas»[24].
O impulso originário da evangelização é o amor de Cristo pela salvação eterna dos homens. Os autênticos evangelizadores desejam apenas dar gratuitamente quanto já receberam gratuitamente: «Desde os começos da Igreja, os discípulos de Cristo esforçaram-se por converter os homens a Cristo Senhor, não com a coacção ou com artifícios indignos do Evangelho, mas primeiro que tudo com a força da palavra de Deus»[25]. A missão dos apóstolos e a sua continuação na missão da Igreja antiga permanece como modelo fundamental da evangelização para todos os tempos: uma missão frequentemente marcada pelo martírio, como demonstra a história do último século. É o próprio martírio que dá credibilidade aos testemunhos, que não procuram poder ou ganhos mas dão a própria vida por Cristo. Esses manifestam ao mundo a força inerme e cheia de amor pelos homens que é dada a quem segue Cristo até ao dom total da sua existência. Assim, os cristãos, desde os inícios do cristianismo até aos nossos dias, sofreram perseguições por causa do Evangelho, como Jesus anunciara: «Se me perseguiram a mim, perseguir-vos-ão também a vós» (Jo 15, 20).
III. Algumas implicações eclesiológicas
9. Desde o dia de Pentecostes, quem acolhe plenamente a fé é incorporado na comunidade dos crentes: «aqueles que acolheram a sua palavra [de Pedro] foram baptizados e naquele dia uniram-se a eles cerca de trinta mil pessoas» (Act 2, 41). Desde o início o Evangelho, na potência do Espírito, é anunciado a todos os homens, para que acreditem e se tornem discípulos de Cristo e membros da sua Igreja. Também na leitura patrística são constantes as exortações para realizar a missão confiada por Cristo aos discípulos[26]. Geralmente usa-se o temo «conversão» referindo-o à exigência de trazer os pagãos para a Igreja. Todavia, a conversão (metanoia), no seu significado propriamente cristão, é uma mudança de mentalidade e de acção, como expressão da vida nova em Cristo proclamada pela fé: trata-se de uma contínua reforma do pensamento e de obras para uma mais intensa identificação com Cristo (cf. Gal 2, 20), que são chamados primeiro os baptizados. Tal é, em primeiro lugar, o significado do convite formulado por Cristo: «convertei-vos e acreditai no Evangelho» (Mc 1, 15; cf. Mt 4, 17).
O espírito cristão foi sempre animado pela paixão de conduzir toda a humanidade a Cristo na Igreja. De facto, a incorporação de novos membros à Igreja não é a extensão de um grupo de poder, mas o ingresso na rede de amizade com Cristo, que liga o céu e a terra, continentes e épocas diversas. É a entrada no dom da comunhão com Cristo, que é «vida nova» animada pela caridade e pelo empenho pela justiça. A Igreja é instrumento - «gérmen e início»[27]- do Reino de Deus; não é uma utopia política. É já presença de Deus na história e traz em si também o verdadeiro futuro, aquele definitivo no qual Ele será «tudo em todos» (1 Cor 15, 28); uma presença necessária, pois só Deus pode trazer ao mundo verdadeira paz e justiça. O Reino de Deus não é – como alguns hoje sustentam – uma realidade genérica que domina todas as experiências ou as tradições religiosas, e às quais deveriam tender como que a uma universal e indistinta comunhão todos aqueles que procuram Deus, mas é acima de tudo uma pessoa, que tem o rosto e o nome de Jesus de Nazaré, imagem do Deus invisível[28]. Por isso, qualquer apelo do coração humano para Deus e o seu Reino só pode conduzir, pela sua natureza, a Cristo e ser orientado à entrada na sua Igreja, que daquele Reino é sinal eficaz. A Igreja é, então, veículo da presença de Deus e instrumento de uma verdadeira humanização do homem e do mundo. O dilatar-se da Igreja na história, que constitui a finalidade da missão, é um serviço à presença de Deus mediante o seu Reino: de facto não se pode «desligar o Reino da Igreja»[29].
10. Hoje, todavia, o anúncio missionário da Igreja é «posto em causa por teorias de índole relativista, que pretendem justificar o pluralismo religioso, não apenas de facto, mas também de iure (ou de princípio)»[30]. Há muito que se criou uma situação na qual, para muitos fiéis, não é clara a mesma razão de ser da evangelização[31]. Afirma-se mesmo que a pretensão de ter recebido em dom a plenitude da Revelação de Deus esconde uma atitude de intolerância e um perigo para a paz.
Quem raciocina assim ignora que a plenitude do dom da verdade que Deus faz, revelando-se ao homem, respeita esta liberdade que Ele próprio cria como traço indelével da natureza humana: uma liberdade que não é indiferença, mas tensão para o bem. Tal respeito é uma exigência da própria fé católica e da caridade de Cristo, um constitutivo da evangelização e, por isso, um bem a promover inseparavelmente do compromisso de fazer conhecer e abraçar livremente a plenitude de salvação que Deus oferece ao homem na Igreja.
O devido respeito pela liberdade religiosa[32] e a sua promoção «de modo algum nos devem tornar indiferentes perante a verdade e o bem. Pelo contrário, é o próprio amor que incita os discípulos de Cristo a anunciar a todos a verdade salvadora»[33]. Tal amor é o selo precioso do Espírito Santo que, sendo o protagonista da evangelização[34], não cessa de mover os corações para o anúncio do Evangelho, abrindo-os para o seu acolhimento. Um amor que vive no coração da Igreja e daí, como fogo de caridade, se irradia até aos confins da terra, até ao coração de cada homem. Na verdade, o coração do homem espera encontrar Jesus Cristo.
Compreende-se, então, a urgência do convite de Cristo para evangelizar e como a missão, confiada pelo Senhor aos apóstolos, se dirige a todos os baptizados. As palavras de Jesus – «ide e ensinai todas as nações, baptizando-os em nome do Pai e do Filho e do espírito Santo, ensinando-lhes a observar tudo o que vos mandei» (Mt 28, 19-20) – interpelam a todos na Igreja, cada um segundo a sua vocação. E, no momento presente, diante de tantas pessoas que vivem nas diversas formas de deserto, sobretudo no «deserto da escuridão de Deus, do esvaziamento das almas que perderam a consciência da dignidade e do caminho do homem»[35], o Papa Bento XVI recordou ao mundo que «a Igreja no seu conjunto, e os Pastores nela, como Cristo, devem pôr-se a caminho, para conduzir os homens fora do deserto, para lugares da vida, da amizade com o Filho de Deus, para Aquele que dá a vida, a vida em plenitude»[36]. Este dever apostólico é um dever e, ao mesmo tempo, um direito irrenunciável, expressão própria da liberdade religiosa, que tem as suas correspondentes dimensões ético-sociais e ético-políticas[37]. Um direito que, infelizmente, em algumas partes do mundo, não é ainda legalmente reconhecido e em outras, não é respeitado na realidade[38].
11. Quem anuncia o Evangelho participa na caridade de Cristo, que nos amou e se deu a si mesmo por todos nós (cf. Ef 5, 2), é seu embaixador e suplica em nome de Cristo: deixai-vos reconciliar com Deus! (cf. 2 Cor 5, 20). Uma caridade que é expressão daquela gratidão que nasce do coração humano quando se abre ao amor dado por Jesus Cristo, aquele Amor «que pelo universo se difunde»[39]. Isto explica o ardor, a confiança e a liberdade de palavra (parrhesia) que se manifestavam na pregação dos Apóstolos (cf. Act 4, 31; 9, 27-28; 26, 26; etc.) e que o rei Agripa experimentou ao escutar Paulo: «por pouco não me convenci a fazer-me cristão» (Act 26, 28).
A evangelização não se realiza só através da pregação pública do Evangelho, nem unicamente através de obras de relevância pública, mas também por meio do testemunho pessoal, que é sempre uma via de grande eficácia evangelizadora. De facto, «ao lado da proclamação geral para todos do Evangelho, uma outra forma da sua transmissão, de pessoa a pessoa, continua a ser válida e importante. O mesmo Senhor a pôs em prática muitas vezes, por exemplo as conversas com Nicodemos, com Zaqueu, com a Samaritana, com Simão, o fariseu, e com outros, atestam-no bem, assim como os apóstolos. E vistas bem as coisas, haveria uma outra forma melhor de transmitir o Evangelho, para além da que consiste em comunicar a outrem a sua própria experiência de fé? Importaria, pois, que a urgência de anunciar a Boa Nova às multidões de homens, nunca fizesse esquecer esta forma de anúncio, pela qual a consciência pessoal de um homem é atingida, tocada por uma palavra realmente extraordinária que ele recebe de outro»[40].
De qualquer modo, recorda-se que na transmissão do Evangelho a palavra e o testemunho da vida caminham juntos[41]. Para que a luz da verdade se irradie a todos os homens, é necessário, antes de mais, o testemunho da santidade.
Se a palavra é contrária ao comportamento, dificilmente é acolhida. Mas, nem sequer o testemunho é suficiente, porque «ainda o mais belo testemunho virá a demonstrar-se impotente com o andar do tempo, se ele não vier a ser esclarecido, justificado, aquilo que São Pedro chamava dar "a razão da própria esperança" (1Pd 3,15) explicitado por um anúncio claro e inelutável do Senhor Jesus»[42].
IV. Algumas implicações ecuménicas
12. Desde os inícios o movimento ecuménico esteve intimamente ligado à evangelização. A unidade é, de facto, a marca da credibilidade da missão e o Concílio Vaticano II manifestou com pesar que o escândalo da divisão «prejudica a santíssima causa da pregação»[43]. O próprio Jesus, na vigília da sua morte, rezou: «para que todos sejam uma só coisa… para que o mundo acredite» (Jo 17, 21).
A missão da Igreja é universal e não está limitada a determinadas regiões da terra. A evangelização, no entanto, realiza-se de um modo diferente, segundo as diversas situações em que acontece. Num sentido próprio é a «missio ad gentes» dirigida àqueles que não conhecem Cristo. Num sentido mais lato fala-se de «evangelização», relativo ao aspecto ordinário da pastoral, e de «nova evangelização», relativo àqueles que deixaram a praxis cristã[44]. Além disso, há evangelização em países onde vivem cristãos não católicos, sobretudo em países de antiga tradição e cultura cristã. Aqui requer-se tanto um verdadeiro respeito pela sua tradição e riquezas espirituais, bem como um sincero espírito de cooperação. «Banindo toda a aparência de indiferentismo, de confusionismo e odiosa rivalidade, os católicos colaborem com os irmãos separados, em conformidade com as disposições do decreto sobre o Ecumenismo, por meio da comum profissão de fé em Deus e em Jesus Cristo diante dos gentios, na medida do possível, e pela cooperação em questões sociais e técnicas, culturais e religiosas»[45].
No compromisso ecuménico, podem-se distinguir várias dimensões: primeiro a escuta, como condição fundamental de qualquer diálogo; depois vem a discussão teológica, pela qual, procurando compreender as confissões, tradições e as certezas dos outros, se pode encontrar a concórdia, por vezes escondida na discórdia. E inseparável destas duas, não pode faltar outra essencial dimensão do trabalho ecuménico: o testemunho e o anúncio dos elementos que não são tradições particulares ou nuances teológicas mas pertencem à Tradição da própria fé.
Mas o ecumenismo não tem apenas uma dimensão institucional que procura «fazer crescer a comunhão parcial existente entre os cristãos até à plena comunhão na verdade e na caridade»[46]: essa é tarefa de todo o fiel, principalmente através da oração, da penitência, do estudo e da colaboração. Sempre e em toda a parte, cada fiel católico tem o direito e o dever de dar testemunho e anunciar totalmente a sua fé. Com os cristãos não católicos, o católico deve entrar em diálogo respeitoso da caridade e da verdade: um diálogo que não é apenas uma troca de ideias mas de dons[47], de modo a ser-lhes oferecida a plenitude dos meios da salvação[48]. Assim se é conduzido sempre a uma mais profunda conversão a Cristo.
A este respeito é de realçar que se um cristão não católico, por razões de consciência e convencido das verdades católicas, pede para entrar em plena comunhão na Igreja católica, isso é respeitado como obra do Espírito Santo e como expressão da liberdade de consciência e de religião. Neste caso não se trata de proselitismo, no sentido negativo atribuído a este termo[49]. Como reconheceu explicitamente o Decreto sobre o Ecumenismo do Concílio Vaticano II, «é evidente que o trabalho de preparação e reconciliação dos indivíduos que desejam a plena comunhão católica é, por sua natureza, distinto da empresa ecuménica: Entretanto, não existe nenhuma oposição entre as duas, pois ambas procedem da admirável Providência divina»[50]. Logo, tal iniciativa não priva do direito nem exime da responsabilidade de anunciar em plenitude a fé católica aos outros cristãos, que livremente aceitam acolhê-la.
Esta perspectiva requer naturalmente evitar qualquer indevida pressão: «na difusão da fé religiosa e na introdução de novas práticas, deve sempre evitar-se todo o modo de agir que tenha visos de coacção, persuasão desonesta ou simplesmente menos leal, sobretudo quando se trata de gente rude ou sem recursos. Tal modo de agir deve ser considerado como um abuso do próprio direito e lesão do direito alheio»[51]. O testemunho da verdade não procura impor algo pela força, nem por uma acção coerciva ou artifícios contrários ao Evangelho. O próprio exercício da caridade é gratuito[52]. O amor e o testemunho da verdade procuram acima de tudo convencer pela força da palavra de Deus (cf. 1 Cor 2,3-5; 1 Tes 2,3-5)[53]. A missão cristã reside na potência do Espírito Santo e na própria verdade proclamada.
V. Conclusão
13. A acção evangelizadora da Igreja não pode ser menor, pois nunca lhe faltará a presença do Senhor Jesus na força do Espírito Santo, segundo a sua própria promessa: «Eu estou convosco todos os dias, até ao fim do mundo» (Mt 28, 20).
Os relativismos e irenismos de hoje em âmbito religioso não são um motivo válido para descurar este trabalhoso mas fascinante compromisso, que pertence à própria natureza da Igreja e é «sua tarefa primária»[54]. «Caritas Christi urget nos – o amor de Cristo nos impele» (2 Cor 5, 14): testemunha-o um grande número de fiéis que, levados pelo amor de Jesus tiveram, ao longo da sua história, iniciativas e obras várias para anunciar o Evangelho, a todas as pessoas e em todos os âmbitos da sociedade, como aviso e convite perene a todas as gerações cristãs a cumprirem com generosidade o mandato de Cristo. Por isso, como recorda o Papa Bento XVI, «o anúncio e o testemunho do Evangelho são o primeiro serviço que os cristãos podem dar às pessoas e à humanidade, chamados a comunicar a todos o amor de Deus, que se manifestou plenamente no único Redentor do mundo, Jesus Cristo»[55]. O amor que vem de Deus une-nos a Ele e «transforma-nos em um Nós, que supera as nossas divisões e nos faz ser um só, até que, no fim, Deus seja “tudo em todos” (1 Cor 15, 28)»[56].
O Sumo Pontífice Bento XVI, na Audiência concedida ao Cardeal Prefeito, no dia 6 de Outubro de 2007, aprovou a presente Nota doutrinal, decidida na Sessão Ordinária desta Congregação, e ordenou a sua publicação.
Dado em Roma, na sede da Congregação para a Doutrina da Fé, a 3 de Dezembro de 2007, memória litúrgica de S. Francisco Xavier, Padroeiro das Missões.


William Cardeal Levada
Prefeito
Angelo Amato, sdb
Arcebispo titular de Sila
Secretário